segunda-feira, 26 de outubro de 2009

PARIDADE NO MUNDO REAL



Onde paro diariamente meu carro há um flanelinha.


Aqui no DF uma lei distrital criou a figura do flanelinha oficial.
O cara apresenta lá uma lista de documentos, tipo identidade, folha corrida policial ou lá o que seja etc.
Perfeitamente documentado e identificado o cidadão recebe um documento que o qualifica como guardador de veículos autônomo e o direito a usar uma sobreblusa azul, tipo aquelas que os jogadores usam em treinos para diferenciar times, que mostra ser ele um cara “ficha-limpa”.
Não é o suficiente para ser deputado, mas dá para ser um flanelinha oficial.
Dizem que dará maior tranqüilidade aos motoristas, que o guardador poderá descontar para a Previdência etc.
Não estou, agora, muito interessado no mérito dessa proposta.

Meu ponto tem mais a haver com outro fato. O guardador que cuida do meu carro, Francisco, tem 44 anos.
Logo que soube da lei falei com ele e recomendei que procurasse quem de direito e providenciasse a tal da licença do GDF, pois, no mínimo e, dando certo a iniciativa, haveria uma clivagem entre os oficiais e os genéricos.
Possivelmente os oficiais, por o serem, acabariam tomando as áreas dos genéricos.
Francisco concordou com a lógica e correu atrás.
O problema é que o amigo só tinha uma certidão de nascimento. Ou seja, um brasileiro de 44 anos jamais teve em sua vida um único emprego formal.
Agora está tirando documentos que nunca teve: identidade, CPF, título de eleitor e certificado de reservista.

Fora a evidente questão de cidadania e seu exercício concreto, tipo o voto, por exemplo, fica a questão de que tipo de política pública atinge esses indivíduos e qual o seu efeito concreto.
Pode parecer pouca coisa, mas não é.
Francisco é um perfeito candidato à Bolsa-Família, hoje, e amanhã à aposentadoria de salário mínimo.
Na próxima campanha certamente será um exemplo dos 18% de brasileiros, que podem chegar a mais de 50% dos habitantes de municípios do norte/nordeste, beneficiados pelos programas sociais do governo que se pretende sejam transformados em Política de Estado, perpetuando assim a imagem de seu autoassumido criador.

Francisco irá receber uma coisa aqui, outra coisa ali e jamais terá contribuído com nada. Não porque tenha sido um rent-seeker por vontade própria, mas porque jamais pode ser mais que isso.

Não teve oportunidade de ser travado, junto com seu patrão, na monumental carga trabalhista cobrada em nosso país, ou se pagar tanto e receber pouquíssimo de retorno.

Reparem que o custo/benefício entre tributação trabalhista e benefício concreto do trabalhador não é exatamente esclarecido.
Esse salário a mais que cada trabalhador/patrão enviam para o Estado no formato de tributação trabalhista não estaria também melhor nas mãos de famílias e empresas?

Mas, por enquanto, vamos admitir que, na verdade, o que não reverte diretamente para o trabalhador, digamos “A”, reverte para o trabalhador, digamos “B” tipo o nosso Fernando.
Como, por exemplo, o caixa da previdência é um só, o que o trabalhador “A” pagou deve cobrir “A” e o Fernando que não pagou nada.
Da mesma forma o Sistema S e o FAT que vivem dos recursos que saem do bolso de “A” , quando capacitam, supondo que o façam e não gastem em outras coisas, o Fernando para o mercado, o fazem com o dinheiro de “A”.
Também o FGTS que financia, de forma subsidiada, a casa que o Fernando irá comprar e, talvez não tenha meios de pagar, mas que estará coberta por um seguro, também subsidiado, foi constituído com o dinheiro de “A”.
Enfim, sem ir muito longe, quem realmente segura a barra de Fernando não é o governo. É o “A”.

Supostamente estamos frente a um dilema, já resolvido, entre eficiência e equidade. Digo já resolvido, pois a Constituição de 88 já resolveu e assume que o mercado pode ser menos eficiente – a tributação retira eficiência na alocação de recursos feita pelo mercado. Numa outra situação o recurso não tributado viraria poupança, gasto ou investimento nas mãos de famílias e empresas - desde que tenhamos mais equidade em nossa sociedade.

Se a Constituição resolveu o dilema, não teve Medida Provisória que resolvesse um outro dilema: Como se gastam os recursos...
Fernando pode viver e morrer na beirada de “A”.
Ou na beirada de toda a nação via dívida pública.
Ou debaixo da pala do chapéu da transferência direta de renda.
Tanto faz.
Fernando jamais será “A”.
Jamais terá meios de prover ele próprio e de forma sustentada sua subsistência ou de sua família em moldes mínimos de qualidade de vida.
Para não ter que ser um rent-seeker involuntário Fernando teria que poder ter um emprego formal e não é isto que o atual sistema de combate à desigualdade oferece.
Como diria Gonzaga esse sistema dá apenas o peixe.
Não dá a rede. Não pode dar a rede, pois o controle dela significa voto, que significa poder, que significa perpetuação no poder, que significa renda, muita renda e de boa qualidade para o Rei e seus amigos.

Demetrio Carneiro