Na edição de 27 de julho de 2011 da Revista Veja há uma matéria bem interessante: Pobres Homens Ricos. Sinteticamente ela relata numa reportagem o envolvimento de diversos políticos com empresas “laranja” – Jader Barbalho, Joaquim Roriz, Renan Calheiros, Gim Argelo e Romero Jucá, aquele do irmão “perdoado - com finalidades evidentes de fraude. Na mesma matéria cita uma auditoria do TCU em 142 mil contratos de compra do governo Lula, envolvendo gastos superiores da R$ 100 bi. A auditoria constatou 80 mil indícios de irregularidades – disputas simuladas, empresas de fachada, alterações absurdas do valor inicial, participação de empresas inidôneas, participação de funcionários públicos e/ou familiares diretos, fracionamento de empresas em pequenas empresas e, finalmente, empresas com participação direta de parlamentares.
De início cabe ressaltar a diferença, grande, entre corrupção e patrimonialismo (anotando que o mais correto seria neopatrimonialismo, mas vamos, por enquanto seguir a onda de leitura). Corrupção é algo endêmico, mas que pode ser visto como pontual. Patrimonialismo, diferentemente, é sistêmico e, organizado numa rede de patronagem, é parte do sistema de poder atual. A Coalizão Dominante atual repousa sobre uma extensa rede vertical, federação, e horizontal, república, linkada à rede de patronagem com diferentes graus de profundidade.
A questão que parece mais relevante está em definir como “patrimonialismo” se relaciona com “democracia” e “desigualdade”. De forma que me parece muito evidente o patrimonialismo é forte elemento de desvio da democracia. Aqui vamos assumir que é mais democrático o Governo capaz de transformar tributos apropriados na sociedade em políticas públicas que produzam bens públicos – bens de caráter não-excludente. Quando os tributos apropriados são transformados em benefícios privados dentro da rede de patronagem há um evidente desvio de finalidade, pois bens privados são excludentes por natureza. Governos que, de alguma forma, admitam o patrimonialismo como orgânico são menos democráticos. Evidentemente o patrimonialismo pode estar lá instaurado, mas toda a diferença estará no Líder e seu Grupo de Poder admitirem ou não a organicidade. A lógica é mais ou menos óbvia: O eleitor, em tese, vota na hipótese de quem tributo seja igual a bem público. Evidentemente haverá sempre o eleitor, aquele engajado na Rede de Patronagem, que votará na hipótese de que tributo é igual a bem privado, mas vamos admitir, para efeitos de atualidade, que a grande maioria estaria fora da rede e que a rede tem papel, no compto geral de votos, subsidiário. Enfim, Patrimonialismo e Democracia se relacionam de forma indireta.
Do ponto de vista da desigualdade acredito que haja certa sutileza. Na media em que o eleitor fora da Elite percebe a possibilidade de disputar benefícios no formato de políticas públicas, e a Constituição Federal de 1988 é o melhor exemplo que ele é pode, ele o fará. A Rede de Patronagem é perfeitamente capaz de perceber esses sinais, da mesma forma que a Elite – aqui estamos dizendo que a Elite, mesmo no Brasil, necessariamente não precisa ser parte integrante da Rede de Patronagem, embora essa lhe seja extremamente útil. Há ai um balanço a ser ainda testado entre mais e menos desigualdade, mas parece que Elite e Rede de Patronagem, com razões que podem ser diferentes (Para a Elite certamente mais “mercado consumidor” e para a RP provavelmente protelação de um conflito mais forte) “cedem”, de forma limitada e controlada, algum grau de igualdade. Contudo, não é do Patrimonialismo e nem mesmo da Elite ceder tudo. Mas é muito menos do Patrimonialismo, pois ceder igualdade implica necessariamente em ceder , pela via do Estado, bens públicos e a Rede só permanece se for capaz de reter bens públicos enquanto bens privados. Enfim, a relação entre Patrimonialismo e Desigualdade também é indireta.
Pessoalmente acho que ainda estamos no caminho, talvez um pouco longe demais, de um debate mais substancial sobre os arranjos de Poder e o papel que o Patrimonialismo joga neles, os arranjos. Por enquanto os debatedores se satisfazem em citações talvez genéricas demais e essa generalização talvez até ajude um discurso político que gosta de nivelar por baixo acreditando que a simplicidade dos termos chega melhor ao eleitor. Os adeptos dessa lógica apenas não percebem o que vai ficando pelo meio do caminho: A realidade. Quando Collor foi transformado em Collor o ganho, pelas mãos de Itamar Franco, foi o Plano Real e a Estabilidade. Há uma sensação de bem estar na deposição de Collor, mas depô-lo não nos trouxe o fim do Patrimonialismo. Não era ele o alvo real. Muito ao contrário o que veio depois foi o fortalecimento do Patrimonialismo via Presidencialismo de Coalizão, inaugurado com todas as pompas e honras por FHC. Do lado político a mensagem da deposição de Collor aos presidentes que vieram a seguir foi bem simples: Formem maiorias absolutas no Congresso Nacional para se garantirem. Nessa nossa jovem democracia de instituições ainda em formação e fortíssimo déficit de cidadania a lógica patrimonialista caiu como uma luva. Transformar Dilma em Collor não é necessariamente uma solução se não for para eliminar a Rede.
O artigo abaixo, publicado originalmente no Estadão hoje, 14, trás uma reflexão sobre essas questões e aponta o que já vínhamos comentando: Dilma poderá entrar para a história de duas formas ou como a presidente que caiu devido ao seu comprometimento com a corrupção e o patrimonialismo ou a presidente que cresceu combatendo ambos. Talvez a oposição devesse refletir melhor sua atitude de colocar Dilma na parede, como responsável. É verdade que ela fez parte do núcleo duro de Lula, que concretizou os arranjos de Poder atuais. Mas também pode ser verdade, e a história tem muitos exemplos, que ela busque se autonomizar, já que sua origem, sua raiz, não está na Rede. É uma aposta. Há apostas bem piores...
O revolucionário Maximilien Robespierre dizia que seu negócio era combater o crime, não governá-lo
Carlos Guilherme Mota - O Estado de S.Paulo*
Na história, situações há em que personagens do Estado, da política ou da cultura se veem obrigados a assumir papéis que os levam a adotar medidas radicais, daquelas que mudam o curso dos acontecimentos. Analisados em perspectiva histórica, crescem ou diminuem conforme as respostas que deram aos desafios de seu tempo, desde antes dos gregos e romanos até os modernos, como Galileu, Napoleão, Roosevelt, De Gaulle, Mandela, todos aliás grandes leitores de livros de história.
Hoje, é a ex-revolucionária Dilma Rousseff que se acha sob a luz dos holofotes. Nas pesquisas da mídia e nas torcidas desorganizadas desta "sociedade civil" com lideranças precárias, vem se tornando mais difícil a posição da herdeira de um modus político neopopulista e desse ethos nacional insuportável, em que a noção de República é manipulada e banalizada por agentes desqualificados. A presidente com sua caneta vai assumindo papel inesperado de agente moralizador para repor nos trilhos a máquina desgovernada de um imenso Estado patrimonialista, familista, clientelista. Difícil a faxina, pois ainda chafurdamos na transição de uma ditadura explícita para essa ordem constitucional confusa e pseudodemocrática em que personagens, dejetos e, sobretudo, mentalidades herdadas dos vários tempos históricos, da Colônia e do Império às Repúblicas de 1889 a 1988, permitem qualificar o modelo atual de democracia de meia-confecção.
Como jamais ocorreu nestas plagas a consolidação de uma sociedade capitalista de contrato democrática, muito menos uma revolução popular, tem-se (temos?) que conviver com o tal "presidencialismo de coalizão". Ou seja, com essa invenção pervertida que jogou o País no patamar mais baixo do brejo da Conciliação, ideologia arquitetada pelas elites imperiais escravocratas do século 19 e imperante até hoje.
O resultado é o aprimoramento desse centralismo obtuso com imposição de normas jurídicas e de formas de comportamento que revelam o atraso de nossas instituições jurídico-políticas e, como decorrência, preocupante conformismo coletivo nacional. É nesse quadro que soam como radicais a atuação da promotoria com nova visão social e política, as ações rigorosas da Polícia Federal, de jornalistas e de lideranças iracundas da sociedade civil que tentam romper com um passado nefasto para a implantação de uma nova democracia.
Ora, impõem-se de fato maior transparência na gestão da coisa pública, efetiva representatividade dos políticos e rigor no combate à impunidade, com a prisão dos corruptos de variada ordem. Paralelamente, urge requalificar os quadros administrativos, políticos, educacionais, científicos, diplomáticos e militares. Nesse processo, como dizia Martin Luther King, "não me preocupa o grito dos violentos, os corruptos e os desonestos, mas o silêncio dos bons".
A presidente Dilma crescerá - ou não - nessa encruzilhada desafiadora. Na construção de uma nova sociedade civil, reunida em torno de liderança não populista e não coalescente, poderá ela ter papel histórico se não se acomodar docilmente à tal "coalizão", nociva por reaquecer hábitos que suporíamos ultrapassados pelo governo anterior, que se propunha "popular".
O governo de Dilma parece firme. Pois "nunca antes na história deste país" três ministros de Estado caíram em tão pouco tempo - por razões distintas - e outros passaram a ser fiscalizados de perto. Dado que a Polícia Federal está submetida ao Ministério da Justiça e o ministro é subordinado à Presidência, torna-se claro que a presidente terá papel decisivo com sua pouca disposição para conciliar a qualquer preço com partidos da base, sobretudo com os recheados por agentes do fisiologismo tacanho, no caldo de oportunismo boçal.
Poderá ela, se quiser, passar à história como aquela que pôs fim à "transação cordial" pouco séria que nos denigre interna e externamente. E o vice-presidente, Michel Temer, se escolher o lado correto e controlar com mão forte seu partido, poderá jogar papel importante na reconfiguração nacional em curso. Ou ficar fora da história.
Agora é torcer, pois com a corrupção à solta e em conjuntura mundial de crise, não há Estado que aguente. A violência urbana (arrastões em restaurantes e praias, latrocínios e sequestros) e a violência rural (agravada nos últimos anos), mais o retorno da inflação, exigem medidas fortes. Pois os simpáticos "capitães da areia" de Jorge Amado, malformados e famintos, migraram para as cidades e uma multidão deles engrossa as estatísticas de assaltantes e de jovens motoboys mortos em nossas travadas anticidades.
A história ensina que, desde antes da Revolução Francesa, o pânico coletivo pode sempre ocorrer e ser "contagioso", como se verifica na Inglaterra, no Chile, na Síria e outros países. Quanto a nós, somos filhos da Revolução Francesa ou do quê? A expectativa é que a presidente Dilma não passe por cima da lição do revolucionário francês Maximilien Robespierre, o Incorruptível, em seu célebre discurso de 1794: "Sou talhado para combater o crime, não para governá-lo".
*CARLOS GUILHERME MOTA, HISTORIADOR, PROFESSOR EMÉRITO DA FFLCH DA USP E PROFESSOR TITULAR DA UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE, É AUTOR DE HISTÓRIA E CONTRA-HISTÓRIA (EDITORA GLOBO)