segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Mais-Valia não é Axioma (Crítica à Esqueda)

Para contextualizar meus pontos, irei republicar alguns pots antigos antes de postar os novos.

Mais-Valia não é Axioma (Crítica à Esqueda)

Existem certas definições que terminam por ganhar força de verdades absolutas, sem nenhum nexo ou mesmo motivo assumem a posição de axiomas a partir dos quais são construídas teorias, idéias e novas definições.
A Teoria Econômica e Sociológica Marxista é recordista na criação de tais axiomas. É óbvio que tal fenômeno não é responsabilidade de Marx, autor que inclusive adiou a publicação do restante (volume 2) do O Capital após o surgimento das idéias utilitaristas. Os responsáveis por esse erro crasso são os próprios seguidores e defensores do marxismo que, por preguiça ou desleixo, não demonstram nenhuma preocupação em realmente estudar o que propôs Marx e o que diziam seus oponentes.
Vamos por partes, o que permitirá a correta contextualização do debate que pretendo trazer.
Política como elemento de transformação:
Um argumento muito comum entre esquerdistas é que antes de econômica ou sociológica, a Teoria Marxista é uma teoria política da transformação, enquanto as outras vertentes, especificamente o liberalismo, são teorias que buscam manter o status quo. Por ser uma doutrina de fato política, não seria necessário ao Marxismo o tipo de coerência científica exigida pelos liberais, defensores de tudo de ruim que há no mundo. Logo, pouco importa se há ou não coerência na idéia de Mais-Valia, Acumulação Primária etc, o relevante é sua utilidade como instrumentos para a transformação.
Uma construção como a do parágrafo anterior é tão errada que é até difícil saber por onde se deve começar a criticá-la. No caso do liberalismo ou do comunismo, ambos pregam transformação e mudança no status quo e ambos prometem algo parecido, a melhoria das condições de vida dos seres humanos. A discordância básica é no modo como tal melhoria ocorrerá.
Para a teoria liberal os três maiores meios de transformação e melhoria da sociedade são: o livre comércio, a liberdade individual e a livre iniciativa. Um liberal não tem uma definição exata do significado de melhoria, cabe ao próprio indivíduo, através de suas escolhas e ações, a determinação do que é ou não melhor. Caso trabalhe para um patrão opressor, ele mudará de emprego, se todos seus colegas concordam com ele, o patrão rapidamente ficará sem empregados e caminhará para a ruína. A livre iniciativa, associada à mercados financeiros desenvolvidos, permite que os empregados sempre tenham uma opção ao trabalho assalariado. O comércio é uma das principais forças de transformação, foi ele o responsável pela queda do Antigo Regime na Europa, ele é fundamental para derrubada de oligarquias regionais e pelo surgimento de novas e melhores oportunidades de emprego e consumo. A transformação da sociedade é contínua e voluntária, reflete as escolhas feitas por cada indivíduo em seu dia a dia e no tipo de valores que transmitem para seus filhos. No liberalismo a transformação ocorre de baixo para cima, não há revolução ou contra-revolução, não há violência pelo simples fato de ser legítima.
Para um socialista/comunista, a transformação é política e ocorre de forma organizada e planejada através da condução cuidadosa dos assuntos da sociedade de maneira a se obter o resultado final planejado pelos políticos. A classe política tem pleno conhecimento do que é melhor, de qual é o significado do termo desenvolvimento e que rumo ou caminho deverá ou não ser traçado. Os condutores da transformação, que por algum motivo não são representantes do status quo e têm como único interesse a melhoria dos padrões de vida da população para aquilo que eles definem com melhor, serão capazes de diagnosticar quais relações sociais devem ser influenciadas/alteradas para que o devido processo de transformação ocorra. Nessa lógica, através da leitura política das relações sociais se determina os pontos focais da ação política organizada, que provocará a ruptura do status quo e representará um passo adicional rumo ao mundo mais justo. É através da leitura política das relações sociais e de sua devida manipulação que o objetivo final, determinado como final pelas lideranças, é alcançado. Por enfrentar “corajosamente” o opressor e injusto status quo, que fatalmente reagirá, é possível que essas ações tenham que apelar para a violência, organizada é claro. De qualquer forma, sendo o socialismo o ápice do desenvolvimento social, isso segundo o materialismo histórico de Marx, nenhum movimento político será questionável, pois visa um bem maior, que supera o direito ou o bem-estar de um único indivíduo, o estágio último do desenvolvimento humano, o socialismo.
Bem, doutrina política ou não, toda e qualquer idéia que visa mudança deve ser capaz de determinar o que deve ou não ser alterado. Para isso se faz necessário um modelo lógico capaz de explicar as relações sociais. Ora, se quero, através de minha ação, alterar o estado das coisas de A para C e para isso uso a política D, precisarei de algo que me diga o que é D e como pode ser implementado de forma a conduzir a situação A para a situação C.
Como o parágrafo acima deixa claro, classificar o questionamento das estruturas lógicas que fundamentam conceitos como Mais-Valia, Exploração Capitalista etc como irrelevantes, pois no fim a doutrina é política e não econômica, é um erro elementar. Sem diagnosticar da melhor forma possível o modo como as relações sociais ocorrem e o que determina o comportamento dos agentes dentro de uma sociedade, não é possível construir nenhum tipo de Política da Transformação.
Não importa se a maneira escolhida para se estudar as relações sociais segue uma metodologia de construção lógica, como faz a moderna sociologia, antropologia e parte da economia, ou formal matemática, abordagem dominante na economia. O fato relevante é a necessidade de métodos e modelos coerentes para se interpretar as relações sociais, só assim elas poderão ser transformadas politicamente. Nesse sentido se faz necessária a crítica cuidadosa de parte considerável da ideologia de esquerda que, atualmente, ao invés de buscar a efetiva compreensão das relações sociais, suas causas e conseqüências, tem tomado como verdade conceitos ultrapassados e metodologicamente frágeis. A fuga típica, “não estou preocupado com a formalização lógica que você quer, pois essa é uma doutrina da transformação” é um erro que só prejudica a causa da esquerda socialista, pois é incapaz de determinar de maneira objetiva o quê deve ser transformado e quais são os instrumentos adequados para tais transformações.
Na incapacidade de determinar os métodos mais adequados, a retórica violenta e incoerente domina o discurso de parte considerável da esquerda socialista, enquanto a desorientação e a busca incessante de maneiras para justificar uma forma de atuação, tomada como verdadeira e correta sem que haja um verdadeiro motivo para isso, termina por aproximar políticos responsáveis da esquerda de verdadeiros charlatões teóricos, hoje personificados em keynesianos “modernos” ou desenvolvimentistas (é obvio que esta não é uma definição que vale para todos eles).
Mesmo que aceitemos o ser de sabedoria suprema personificado no líder de esquerda que sabe o que é “A Melhor Sociedade”, caso este ser supremo utilize modelos de análise da sociedade ruins, ele jamais será capaz de levar a sociedade do ponto atual de desenvolvimento para o “A Melhor Sociedade”.
Se o militante típico da esquerda socialista não for capaz de criticar a fraqueza do modelo de observação social que o hoje aparelha sua estrutura lógica de análise, e classificar as falhas como menos importantes dado o fato do socialismo ser uma Política da Transformação, toda e qualquer tentativa de melhoria que ele conduza estará fadada ao fracasso e, fatalmente, as pessoas que sofrerem os reflexos das ações desses militantes terminarão pior do que começaram, seja essa mudança medida sob a ótica liberal ou socialista.
Nesse ponto é útil abordarmos alguns esclarecimentos iniciais. Economia é antes de tudo uma ciência apriorística, enquanto a história é uma área de estudo que depende de ciências apriorísticas. Sem a estrutura lógica oferecidas pelos demais ramos do conhecimento, os documentos e registros que compõem o cerne da pesquisa histórica não passam de fatos isolados, papéis perdidos e relatos desconexos. O historiador depende de seu conhecimento apriorístico, derivado de outras ciências, para construir os nexos causais entre os documentos e relatos, e assim construir o quadro descritivo lógico do passado. Os próprios documentos e relatos são classificados como úteis ou não com base nas ciências e crenças apriorísticas do historiador.
Feitos esses esclarecimentos iniciais, sigamos para a Mais-Valia e, conseqüentemente, à idéia do empresário explorador.
Os economistas clássicos foram os pioneiros no enfrentamento do problema do valor. As questões básicas eram entender o processo de formação dos preços, o impacto e o que causava a divisão do trabalho, o processo de trocas e o que determinava a riqueza de uma nação (uma questão que marcava um duro contra ponto às idéias mercantilistas).
Na busca por respostas, o processo de formação dos preços era questão central. David Ricardo, economista responsável pelo desenvolvimento da teoria das vantagens comparativas do comércio, levou a teoria do valor-trabalho ao seu limite. Marx utilizou os ensinamentos de Ricardo e Smith para desenvolver sua teoria da Mais-Valia e da exploração.
Segundo a teoria do Valor-Trabalho, tudo pode ser reduzido a trabalho e o preço de um bem ou serviço é igual ao somatório do trabalho necessário à sua produção. Essa teoria fez frente às idéias dos Fisiocratas franceses, que defendiam que todo valor vinha da terra. Para o homem que acredita na teoria do Valor-Trabalho, todo valor vem do trabalho.
Segundo Ricardo, mesmo uma máquina, bem de capital, poderia ser reduzida ao trabalho que fora anteriormente gasto em sua produção.
É essencialmente desta construção teórica que surge a idéia de exploração do trabalhador. Ora, se o valor de um dado produto é o somatório do trabalho necessário para sua produção e o capitalista obtém lucro, ou algum tipo de renda, isso só pode ocorrer através da indevida apropriação de parte da renda gerada pelo trabalho dos empregados. Então, o capitalista só prospera mediante a exploração das massas trabalhadoras.
A diferença entre o valor de uma mercadoria e o que foi pago ao trabalhador é a Mais-Valia que, segundo Marx, pode ser medida de forma absoluta ou relativa.
Há um grave problema nessa construção. Ela não é capaz de explicar de forma satisfatória o processo de formação dos preços de mercado. Se a teoria do Valor-Trabalho é valida, dois produtos que demandem a mesma quantidade de trabalho têm que, necessariamente, valer a mesma coisa, mas não é isso que se vê nos preços de mercado. Esse problema, transformar insumos em preços, passou a ser conhecido como problema da transformação e tornou-se o calcanhar de Aquiles da Teoria Econômica Marxista e, conseqüentemente, de sua teoria sociológica e da idéia de exploração capitalista.
Ainda com Marx vivo e antes da publicação do segundo volume de O Capital, que só ocorreu após sua morte, surge uma teoria alternativa de explicação do valor, a teoria da Utilidade, segundo a qual os agentes econômicos são motivados por fatores subjetivos e buscam maximizar sua satisfação. Para a teoria do valor segundo a utilidade, os consumidores atribuem valores subjetivos aos produtos que consomem no mercado, só compram se o benefício marginal do consumo for superior ao preço. Por sua vez, o produtor, que busca maximizar seu lucro, só ofertará se o consumidor estiver disposto a pagar o equivalente ao custo marginal de produção. Dessa forma há dois problemas resolvidos individualmente: o consumidor observa os preços de mercado e consome até o benefício marginal do consumo igualar seu custo marginal (preço) e o produtor aumenta a produção até que o custo marginal iguale sua receita marginal (preço).
A teoria do valor com base na utilidade marginal se mostrou muito mais eficaz e capaz de explicar o processo de formação dos preços de mercado e o comportamento dos agentes econômicos.
Ao longo do século XX, alguns economistas marxistas tentaram responder aos questionamentos feitos à teoria do valor de Marx, principalmente aos pontos levantados por Böhm-Bawerk, dentre eles destacam-se: Bortkiewicz, Winternitz e Meek. Porém, nenhuma dessas contribuições foi capaz de construir um modelo de análise mais rico e aplicável do que o proposto pelos utilitaristas.
Sraffa é outro economista que teria apresentado uma possível solução aos problemas da Teoria do Valor-Trabalho. Em seu livro “Produção de Mercadorias por Meio de Mercadorias”, ele apresentou uma possível alternativa à teoria da utilidade marginal, ao desenvolver a teoria de preços proposta por Ricardo.
Mesmo entre historiadores marxistas há forte confusão sobre o sucesso das respostas ao problema da transformação. Por ser um dos alicerces de todo o pensamento marxista, sua defesa sempre foi algo importante. É útil notar que as respostas dadas são muitas vezes contraditórias entre si, assim como os Volumes 1 e 3 de O Capital. Hunt (1978) dá um exemplo banal de tais contradições ao, num momento, defender a obra de Sraffa como a resposta derradeira aos problemas da Teoria do Valor-Trabalho e, em seguida, ao falar apenas sobre Sraffa, definir suas respostas como inadequadas.
Mesmo a psicologia moderna tem utilizado modelos baseados em satisfação subjetiva e utilidade para estudar o comportamento dos consumidores. As respostas encontradas têm sido julgadas, pelos próprios psicólogos, como satisfatórias.
Sem que haja uma construção teórica adequada que justifique a existência da Mais-Valia, todo e qualquer conceito desenvolvido com base nela está construído sob solo de areia. Mais impressionante que a teimosia de alguns em construir casas em pântanos é o fato de não dedicarem ao menos parte de seu tempo no estudo da areia e das marés, mas limitá-lo à leitura superficial de idéias ultrapassadas e à construção, diante da incapacidade de respostas adequadas, de axiomas frágeis.

Abs

José Carneiro