Quando a crise se anunciou keynesianos de todos os matizes foram unânimes em afirmar que era a consagração das práticas keynesianas e o fim do neoliberalismo. Enfim o negócio era gastar. Agora o própria crise deixa exposta a falha e apresenta toda sua complexidade multidimensional, que descarta soluções simples e atalhos para ganhar tempo e votos.
O uso da dívida pública como instrumento e atalho para a realização de um bem estar que não poderia ser obtido pela renda - no fim do dia uma estratégia de sobrevivência, leia-se reeleição, dos agentes políticos, num ambiente onde a competividade internacional da economia local não era uma preocupação, gerou o atual cenário de desequilíbrio.
Agora, para alguns países, será preciso fazer o dever de casa e os atalhos mostram abertamente sua ineficiência e as questões institucionais sua relevância. Evidentemente para os oportunistas atrás de resultados imediatos, transformáveis em voto & poder, soluções institucionais são muito demoradas.
Talvez devesse servir como lição para nós brasileiros, quanto a "atalhos, competividade e soluções institucionais", mas não é muito provável. Pelo menos enquanto houver uma grande oferta de investimentos externos e pudermos gozar das vantagens de estarmos atrelados à locomotiva chinesa. Para os nossos agentes políticos encastelados na coalizão dominante parece que se trata de viver um dia depois do outro.
Demetrio Carneiro
Mario Draghi, o italiano germânico
Por Cristiano Romero, Valor Econômico
Experiência no setor público fez de Draghi um negociador hábil, um pragmático com talento para lidar com políticos: "Para os italianos, a inflação é um meio de vida, como molho de tomate com espaguete." Foi dessa maneira, com deboche e sátira, que o tabloide alemão "Bild" saudou, em fevereiro, a possível escolha do italiano Mario Draghi para a presidência do poderoso Banco Central Europeu (BCE). "Mamma Mia!", exclamou o tabloide.
O que poderia parecer apenas uma zombaria refletia, na verdade, um sentimento disseminado na Alemanha, um forte preconceito em relação ao italiano Draghi, que, meses depois, se tornou presidente do BCE quase por acaso. O mais cotado para substituir o francês Jean-Claude Trichet era justamente um alemão - Axel Weber, presidente do Bundesbank (o banco central da Alemanha), que renunciou ao cargo em fevereiro e, assim, à disputa pelo comando do BCE.
Italiano de Roma, Draghi, 64 anos, chegou no início do mês passado a Frankfurt, onde fica a sede do BCE, sob forte desconfiança e em meio à crise financeira internacional, considerada a mais grave da história desde 1929. Pior: diante da ameaça de quebra de bancos e países, de desintegração da União Europeia (UE) e do fim do euro, moeda com apenas dez anos de circulação.
Marcados por um passado de hiperinflação, os alemães são, talvez, um dos povos mais apegados à estabilidade de preços. Qualquer ameaça a isso os tira do sério. Como principais patronos do pacto de 27 países que integram a UE, os alemães estão preocupados com o futuro do continente europeu. Ainda assim, ficaram ressabiados com o ativismo do BCE na gestão Trichet.
Draghi foi defensor ferrenho das privatizações italianas e é um apóstolo da austeridade fiscal como condição do crescimento
O BCE, ao contrário, por exemplo, do Federal Reserve (Fed), o banco central dos Estados Unidos, tem apenas um mandato: "Manter o poder de compra do euro e, assim, a estabilidade de preços na área do euro". Mesmo pressionados pelo risco de desintegração da UE, os alemães defendem que, para sair da crise, os países-membros afetados pela desconfiança dos mercados (Grécia, Portugal, Espanha, Itália e mesmo a França) promovam reformas estruturais para fortalecer a situação fiscal, aumentar a competitividade de suas economias e elevar as taxas de crescimento. Exatamente como eles, alemães, fizeram nos últimos anos, pressionados pela emergência da China como potência industrial.
Menos de duas semanas depois da posse de Draghi, o presidente do Bundesbank, Jens Weidmann, deu declarações que, no mercado, foram entendidas como um recado claro ao novo intendente do BCE. Sem meias-palavras, Weidmann disse que o apoio do banco central a governos seria ilegal e que o banco não poderia agir como emprestador de última instância de países. Fazer isso, observou a autoridade alemã, seria uma transgressão aos tratados da UE.
Weidmann também pontificou, em entrevista ao jornal "Financial Times", que dar dinheiro barato para governos europeus os desencorajaria a fazer reformas. "Draghi tem hoje apoio total do sul da Europa, mas falta o norte (leia-se: a Alemanha)", diz o economista Mário Mesquita, ex-diretor do Banco Central brasileiro e profundo conhecedor das principais instituições monetárias.
Francesco Giavazzi, economista mais próximo de Draghi e seu ex-colega de Tesouro: "Até agora, sua gestão é boa. Flexível nas decisões macroeconômicas, duro na cláusula de não fazer socorros (de países).
A ideia de que um italiano à frente do BCE poderia ser a receita para o desastre se baseia nas dificuldades econômicas atuais e passadas da Itália. Enquanto a Alemanha superou o drama da inflação no pós-guerra, a Itália registrou índices elevados (de quase 20% ao ano) até o fim dos anos 80 do século passado. No quesito dívida pública como proporção do produto interno bruto (PIB), é vice-campeã europeia. Perde apenas para a Grécia (142,8% do PIB).
Em 2010, a dívida italiana chegou a 119% do PIB, face a uma média de 100% das economias avançadas, 79,3% do mundo e 39,3% dos países emergentes e em desenvolvimento. O histórico de convivência da Itália com dívida elevada é antigo, mas foi justamente Draghi quem, nos anos 90 do século passado, trabalhou intensamente para tornar a situação fiscal do país solvente e, acima de tudo, crível.
Draghi foi o primeiro italiano a se doutorar pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), uma das mais renomadas escolas de economia do planeta. Orientado por dois Prêmios Nobel - seu compatriota Franco Modigliani e Robert Solow -, Draghi concluiu sua tese, sobre teoria econômica, em 1976. Na mesma escola, também receberam o título de PhD, quase na mesma época, alguns de seus atuais colegas de comunidade financeira internacional - Ben Bernanke, presidente do Fed, e Olivier Blanchard, economista-chefe do Fundo Monetário Internacional (FMI).
Depois de Draghi, passaram pelo MIT Paul Krugman, Prêmio Nobel de economia em 2008 e hoje colunista do "The New York Times", dois formuladores do Plano Real - Pérsio Arida e André Lara Resende - e a economista Eliana Cardoso. Arida e Lara Resende não conviveram com Draghi, mas se lembram dele porque o MIT admite a cada ano grupos reduzidos de estudantes (no máximo, 20). Eliana o conhece um pouco melhor porque ele se aproximou de seu ex-marido, o professor Rudiger Dornbush, que foi também, no MIT, mentor intelectual de Arida.
"A resposta para uma crise deve ser nacional: ação fiscal crível e reformas estruturais que relancem o crescimento", disse Draghi ao 'FT'
"Ele sempre foi diplomata, um estilo tipo Pedro Malan [ministro da Fazenda do Brasil entre 1995 e 2002]. Era muito elegante, em contraste com a maioria dos estudantes, que se vestiam muito à vontade", conta Eliana, ex-funcionária do Banco Mundial e ex-secretária de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda, hoje colunista do Valor. "Ele é dessas pessoas que não têm inimigo. É diplomata no bom sentido e bem conservador."
Ao contrário da maioria dos que passam pela prestigiosa universidade americana, Draghi não se dedicou à carreira acadêmica, embora tenha produzido, em coautoria, trabalhos relevantes para a literatura econômica - em 1990, organizou, com Dornbush, o livro "Public Debt Management: Theory and History" (Gerenciamento de Dívida Pública: História e Teoria). O tema é uma de suas especialidades.
No início dos anos 90, depois de atuar por seis anos como diretor-executivo da Itália no Banco Mundial, Draghi assumiu a chefia do Tesouro italiano. Ele chegou lá quando o país estava atolado em dívidas e os europeus negociavam o Tratado de Maastricht, a base econômica e política que transformou a então Comunidade Europeia em União Europeia. Em 1992, a situação era tão grave que, para rolar sua dívida, o governo italiano precisava emitir US$ 60 bilhões em títulos todo mês.
Como diretor-geral do Tesouro, Draghi poderia ter levado a Itália ao FMI, mas não o fez. Na ocasião, não havia um mecanismo de socorro na UE. O jeito foi enfrentar o problema sem ajuda externa. Nos dez anos que ficou à frente do Tesouro, Draghi cortou gastos públicos, desvalorizou a lira (a então moeda italiana) e promoveu o mais agressivo programa de privatizações da Europa, arrecadando o equivalente a 10% do PIB (em moeda corrente, seria algo como US$ 200 bilhões).
Em 1995, a diferença (o chamado "spread") entre o custo de financiamento da Itália e o da Alemanha chegou a 600 pontos-base (ou seis pontos percentuais). Para convencer os investidores de que os italianos eram capazes de honrar sua dívida, Draghi elevou o superávit primário (que não considera a despesa com juros da dívida), entre 1996 e 1999, para algo entre 5% e 6% do PIB por ano. A estratégia deu certo e o fez tirar uma lição da turbulência do período.
"A resposta primária para uma crise deve ser uma resposta nacional: uma ação fiscal crível e reformas estruturais que relancem o crescimento", disse ele, em entrevista ao "Financial Times", um ano antes de se tornar presidente do BCE. Draghi tirou da experiência italiana outra convicção: a importância de uma abordagem, em qualquer situação, baseada em regras claras e firmes.
"Observe dois países diferentes. Você tem o Japão, com uma extraordinária relação dívida-PIB [220% em 2010] e absolutamente sem tensões e problemas financeiros, tanto quanto sabemos. E nós tivemos países como a Argentina, que deram calote quando a dívida estava, eu acho, em menos de 50% do PIB [53,7% do PIB]. O que isso me diz é que, além da força da economia real, instituições contam", comparou Draghi.
Draghi acredita na economia de mercado, é avesso a heterodoxias e é muito apegado à estabilidade de regras
A austeridade com que Draghi conduziu as finanças da Itália por uma década rendeu-lhe mais do que um apelido - Super Mario, o herói do popular videogame japonês. Desde então, o economista passou a ter boa reputação na comunidade financeira internacional. Em 2002, foi contratado pelo banco de investimento americano Goldman Sachs para o cargo de diretor-gerente da área internacional e vice-presidente.
Durante os três anos seguintes, Draghi exerceu o único cargo privado de sua longa carreira. Foi uma passagem discreta, mas que acabou lhe causando dor de cabeça anos mais tarde, quando já tinha sido escolhido para suceder Jean-Claude Trichet no BCE. Ao eclodir a crise da Grécia, foi revelado o suposto envolvimento do Goldman Sachs nas operações para maquiar os níveis de endividamento do país.
Simon Johnson, professor do MIT e ex-economista-chefe do FMI, questionou o papel do banco americano e, segundo o "Financial Times", se mostrou cético quanto à insistência de Draghi em dizer que não teria participado da operação, que teria começado um ano antes de ele assumir o cargo, mas permanecera nos balanços do Goldman depois que ele passou a trabalhar lá. A imprensa alemã explorou o caso.
"Draghi tem hoje apoio total do sul da Europa, mas falta o norte (leia-se: a Alemanha)", diz o ex-diretor do Banco Central Mário Mesquita.
O episódio foi superado rapidamente por Draghi, que ganhou a disputa pela presidência do BCE e assumiu o posto no início de novembro. Depois de deixar o Goldman, convidado pelo então primeiro-ministro da Itália Romano Prodi para ser ministro da Fazenda, ele voltou a ter cargo importante no governo italiano. Por obra do acaso - um escândalo envolvendo conflito de interesses derrubou Antonio Fazio -, acabou assumindo a presidência do Banco da Itália, o banco central local, cargo que o catapultou à condição de presidente do Banco Central Europeu cinco anos depois.
Tanta experiência no setor público fez de Draghi um negociador hábil, um construtor de consensos, um pragmático com talento para lidar com políticos. Nascido numa família de classe média, perdeu seus pais ainda na adolescência - o pai foi funcionário do Banco da Itália e a mãe era química. Estudou em escola jesuíta e teve como tutor, na universidade La Sapienza, em Roma, Frederico Caffè, um famoso economista keynesiano.
É bastante provável que, na temporada americana, Draghi tenha se tornado mais ortodoxo. Defensor ferrenho e executor das privatizações italianas, além de apóstolo da austeridade fiscal como condição basilar do crescimento da economia, no Brasil seria tachado facilmente de "neoliberal". Draghi, de fato, acredita na economia de mercado, não considera o mercado financeiro necessariamente hostil, é avesso a experimentos heterodoxos e é muito apegado à estabilidade de regras.
"Por ter uma formação mais americana, mais próxima da que teve o Ben Bernanke, ele deve dar um peso maior, no BCE, à análise econômica tradicional. Deve trazer o banco para práticas mais próximas do Fed", prevê Mário Mesquita.
Há apenas 45 dias no cargo, Draghi reduziu a taxa básica de juros duas vezes, trazendo-a de 1,5% para 1% ao ano. Esta, porém, não foi sua decisão mais importante. Antes mesmo de assumir o posto, havia uma forte pressão do mercado para o BCE acelerar a compra de títulos emitidos pelos governos europeus para dar liquidez ao mercado. Ele tem atuado no mercado, mas de forma bastante limitada. Tem sempre em mente a vigilância alemã, mas, mais do que isso, suas convicções: o banco central não deve financiar Estados nacionais.
Na semana passada, os líderes europeus fecharam acordo para fornecer € 200 bilhões ao FMI. O objetivo foi fortalecer o caixa do Fundo, para que ele tenha condições de socorrer países da zona do euro em caso de debacle. O acordo gerou a expectativa de que o BCE entraria pesadamente no mercado, e de forma irrestrita, comprando papéis de economias da UE altamente endividadas, como a Itália. Sem perder tempo, Draghi tratou de desfazer essa ideia.
"O encontro confirmou que a solução para a crise é de responsabilidade dos governos. O financiamento de dívida pública via emissão de dinheiro pelo banco central é e continua banida dos tratados", fez coro Jens Weidmann, o indefectível presidente do Bundesbank.
"O Draghi tem explicado corretamente o risco moral envolvido nas compras de títulos de governo. O Silvio Berlusconi [ex-primeiro-ministro da Itália] caiu na farra e parou de falar em austeridade quando viu o BCE entrando em mercado em agosto último. Isso lhe custou o cargo, como sabemos", observa o economista José Júlio Senna, economista e sócio da MCM Consultores, que lançou no ano passado livro sobre a história da política monetária.
Em compensação, preocupado com o problema de liquidez de bancos europeus, que estão sob forte escrutínio por deter títulos soberanos da região, Draghi anunciou um programa de alívio, de três anos de duração. A medida foi bem recebida pelo mercado.
Deputados da Liga Norte (aliados do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi) protestam no Parlamento italiano contra o plano de austeridade apresentado pelo primeiro-ministro Mario Monti.
"A expansão do apoio financeiro dado aos bancos é uma maneira indireta de apoiar os mercados de bônus da zona do euro e evitar o pior da alavancagem. Foi uma forma inteligente de fazer QE [sigla em inglês de afrouxamento quantitativo de moeda] pelo lado do passivo do sistema bancário: possibilita aos bancos se financiar a 1% ao ano e comprar dívida da Itália de dois anos, por exemplo, a 5,8%", elogia o economista Tony Volpon, da Nomura Securities em Nova York. "Dentro das restrições institucionais do BCE, que não são pequenas, ele está fazendo o possível."
"Ao estabelecer um LTRO (sigla em inglês de operações de refinanciamento de longo prazo) de três anos, ele também se mostra ciente do problema de liquidez dos bancos e sinaliza para o mercado que não deixará nenhum banco quebrar", diz o operador de um grande fundo de hedge americano que pediu para não ser identificado. "Até agora ele tem se mostrado um operador extremamente hábil, rápido e de competência ímpar. Seu discurso é direto e transparente, essencial também em um momento durante o qual o mercado busca direção e liderança. Resta saber se os políticos europeus farão a sua parte para que, então, o mercado o consagre como o banqueiro central da década."
O mercado, evidentemente, quer muito mais do que já foi dado. John Paulson, presidente da Paulson & Co., uma gestora de recursos, estima que serão necessários € 590 bilhões em 2012 apenas para financiar dois países: Espanha e Itália. Ele defende que o BCE adote um programa de garantia das dívidas soberanas como uma solução para a crise de dívida europeia.
Os mercados seguem punindo as nações mais endividadas. Os spreads dos títulos de países centrais da Europa, como Itália e França, sem falar da Espanha, estão aumentando e se distanciando dos da Alemanha. Isso mostra que é crescente a preocupação dos investidores com a capacidade de pagamento desses países (ver gráfico na página ao lado).
Apesar das pressões, Draghi resiste. Ele não acredita em solução rápida para a crise. Crê que esta é uma crise de longa duração, cuja solução será construída aos poucos, a partir do esforço de cada país envolvido. O Draghi, italiano de quem os alemães tanto desconfiam, vai se mostrando cada vez mais germânico.
"Até agora, sua gestão é boa. Flexível nas decisões macroeconômicas, duro na cláusula de não fazer socorros [de países]", disse ao Valor Francesco Giavazzi, economista mais próximo de Draghi, seu ex-colega de Tesouro. "É exatamente assim que o BCE deve se comportar."
"No fundo, o Draghi é meio alemão, em matéria de linha de pensamento. Acredito que ele resistirá às pressões, a meu ver, corretamente. Nada garante que compras irrestritas pelo BCE de papéis soberanos resolveriam a crise", diz José Júlio Senna.