Há um Projeto de Lei, de autoria do líder do governo na Câmara Federal, Cândido Vacarezza, que busca alterar o conteúdo de artigos da Lei 11.105/2005, Lei de Biossegurança. Está em tramitação, mas acredito que acabará indo a voto apenas na próxima legislatura, na dependência de outros acertos, já que o deputado não foi reeleito. Merece atenção, pois de certo ponto de vista é emblemático das relações que se estabelecem entre agentes políticos e grupos associados ao poder real.
Alterando os artigos 3º e 6º pretende autorizar o que estava proibido: “utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso”. Proibido em decorrência moratória aceita pelo Brasil, desde 1998, na Convenção sobre biodiversidade da ONU.
Alterando o artigo 40 pretende critérios não discriminatórios para a a declaração legal de conteúdo referente ao produtos geneticamente modificados:
“Percebe-se que a rotulagem tem sido utilizada como instrumento de contrapropaganda com relação aos OGMs e seus derivados. O uso indevido de métodos para desacreditar um produto que contém um OGM já previamente aprovado pela CTNBio induz o consumidor a equívoco sobre o produto, o que é vedado pelo Código de Defesa do Consumidor, já que este preconiza a informação clara, precisa e correta.” Justificação do PL.
O quadro é basicamente o seguinte:
O Brasil é um dos maiores exportadores mundiais de commodities agrícolas, com forte tendência a ser transformar no maior e, por esta condição, tem sido alvo de interesse das multinacionais da área de produção de sementes.
Atualmente o must da área são as sementes e não mais apenas defensivos ou fertilizantes. É onde se concentram boa parte dos milionários investimentos em pesquisas: Sementes modificadas. Entorno desse tema se travam os debates.
De um lado grupos ambientalistas e pesquisadores se postam de forma crítica e questionam a pressa de introduzir na natureza organismos modificados sem que se tenha uma clara noção do efeito em cadeia desses produtos na natureza ou mesmo na economia.
De outro as multinacionais e seus aliados falam da urgência de alimentar as populações famintas e da possibilidade de lucro dos agricultores.
“Entretanto, as técnicas de melhoramento convencional demandam longo tempo para a obtenção do produto desejado, e muitas vezes não se consegue atingir os objetivos propostos. Por meio da engenharia genética, pode-se obter esses cultivares de uma maneira mais rápida e segura para o consumidor.” Justificação do PL
São grupos extremamente poderosos e “em nome do progresso” algumas coisas vão passando.
Nesse meio tempo outras coisas vão mudando e, do lado do consumidor, já há fortes restrições ao uso humano de produtos oriundos de sementes modificadas, tanto no mercado externo, como no mercado interno.
Na questão da produção de sementes modificadas e no caso brasileiro, a Monsanto é virtualmente uma empresa monopolista e que utiliza práticas típicas de formação de monopólio através da produção de conhecimento científico novo e patenteamento.
Do lado das práticas monopolistas há um debate sobre o direito de retorno por conta do investimento feito em pesquisas. Não é muito diferente da prática dos grandes laboratórios que dominam o segmento de medicamentos e pesam nos orçamentos de todos os ministérios de saúde do planeta.
No caso específico uma das questões em pauta são as sementes híbridas. Sementes que não dão “filhotes.
“Dessa forma, o artigo 4º, ao revogar o inciso VII do artigo 6º da Lei N.º 11.105/05, retira a proibição da “utilização, a comercialização, o registro, o patenteamento e o licenciamento de tecnologias genéticas de restrição do uso”.(Justificação do PL).
Contudo é bom mencionar que o deputado não se limitou a alterar ,favoravelmente à Monsanto, o Artigo 6°. Ele também altera e em profundidade, o conteúdo do Artigo 40 e, certamente, presta bons serviços à toda comunidade de empresas do ramo. Sua contribuição não se limita a melhorar o kaput do artigo 40.
Na Lei de Biossegurança:
Art. 40. Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento.
Na proposta de Vacarezza:
“Art. 40. Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham o OGM ou derivados, seja qual for o limite, deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento.
Parágrafo único. Fica expressamente vedada a adoção de qualquer
símbolo ou expressões na rotulagem dos alimentos que contenham OGMs ou derivados que possam induzir o consumidor a qualquer juízo de valor, positivo ou negativo, sobre o produto.”
Na Justificação do Projeto de Lei o deputado argumenta pela “necessidades de mudanças da Lei N.º 11.105/05, com objetivo de garantir a soberania tecnológica e a agilidade para a pesquisa em nosso país. As propostas de mudanças foram traduzidas no presente Projeto de Lei.”
Tudo em nome do progresso.
Talvez seja em nome dele que haja tantas dificuldades de se identificar com clareza os produtos que usam componentes geneticamente modificados. Afinal a “discriminação” é prejudicial aos negócios. Acredito que acabamos de descobrir uma nova forma de defesa das minorias.
Em nome do progresso também iremos romper com a moratória?
A principal linha de argumento da moratória foi conter nos países em desenvolvimento toda uma sistemática de construção de uma agricultura dependente de empresas do ramo.
“Além disso, é importante ressaltar que a grande maioria das áreas cultiváveis no mundo hoje são semeadas com variedades de sementes híbridas. Tecnicamente, híbridos são o cruzamento de duas variedades diferentes, resultando numa planta com traços de ambas variedades. Plantas híbridas geralmente são maiores e produzem sementes ou frutos maiores, ou têm alguma característica desejável não possuída por nenhum dos pais. Esta resposta, conhecida como vigor híbrido é uma de suas vantagens. Outra é a uniformidade genética: plantas de mesma altura, com grãos e frutos uniformes, com mesma época de maturação e colheita facilitando os tratos culturais. A grande desvantagem ecológica dos híbridos é que as sementes produzidas por estas plantas não podem ser replantadas pelo agricultor, porque a recombinação de genes no cruzamento não irá gerar plantas com o mesmo vigor e características desejáveis dos pais. Ou seja, a cada ano os agricultores são obrigados a comprar sementes híbridas das empresas produtoras de sementes, que não por acaso também dominam o mercado de agrotóxicos ou de fertilizantes.
Em culturas de tubérculos ou com outros mecanismos de reprodução assexuada como a batata e a banana, uma vez que um híbrido é produzido com um conjunto de características desejáveis, ele é, então propagado assexuadamente como um clone. Este método de propagar híbridos sem sementes apesar de amplamente usado, só pode ser desenvolvido por laboratórios especializados que vendem esta muda a um preço relativamente caro para a maioria dos produtores rurais dos países em desenvolvimento.
Seja qual for o meio de reproduzir as plantas gera-se, na agricultura convencional, um verdadeiro "círculo vicioso" de dependência econômica: os agricultores ao comprarem sementes ou mudas de plantas híbridas necessitam adquirir também todo um "pacote tecnológico" da indústria de insumos que inclui produtos como fertilizantes sintéticos e agrotóxicos para que as culturas expressem todo seu potencial.” Planeta Orgânico.
“Pelo risco que representa, no âmbito da Conversão sobre Biodiversidade Biológica, existe uma moratória internacional para que nenhum país plante essas sementes nem faça estufa em plantio experimental, muito menos, em plantio comercial. Esse projeto de lei pega o artigo da Lei de Biossegurança, que reforça a moratória na legislação nacional, e altera a redação justamente para permitir essa tecnologia”, explica o engenheiro agrônomo Gabriel Fernandes, da ONG Agricultura familiar e agroecologia (Aspta).” Congresso em foco.
Este é o quadro geral.
Foi a ampla repercussão na própria base aliada da matéria do Congresso em foco que trouxe para o debate o papel do deputado na alteração da Lei de Biossegurança. Na verdade não se trata de questionar o direito de lobby da empresa. A relevância veio por conta das alterações favoráveis à Monsanto terem sido realizadas por um deputado do PT e líder do governo na Câmara. Certamente o simbolismo não passou desapercebido.
"Na avaliação das entidades, a coautoria da advogada conselheira das multinacionais comprova os interesses da indústria de alimentos e de multinacional que detém patentes de transgenias na aprovação do projeto de Vaccarezza. A advogada é conselheira do Conselho de Informação sobre Biotecnologia (CIB), que além da Monsanto, tem como associados multinacionais como a Basf, Bayer, Cargill, Dupont e Arborgen.
Os indícios da participação da advogada na elaboração do projeto do líder do governo aparecem no arquivo da proposta que consta no site da Câmara. Na página do projeto, o arquivo em PDF do PL 5575/2009 tem como autora Patrícia Fukuma. O nome da advogada aparece nas propriedades do documento. Em arquivos de matérias legislativas, a Câmara não costuma identificar o autor do documento." Congresso em foco.
Não é, de fato, um debate simples e algumas posições hostis às sementes modificadas podem facilmente ser confundidas como o fundamentalismo da Via Campesina.
Não se trata de estar contra as inovações e seu papel no desenvolvimento, mas sim de atitudes prudenciais.
No caso específico das sementes híbridas, como se citou, trata-se da criação de um mecanismo de dependência de toda uma cadeia de produção aos interesses comerciais de uma unica empresa, desconhecendo, ai sim, um importante papel do Estado na economia. No caso da rotulagem há uma nítida tentativa de vitimizar os segmentos que aderiram aos transgênicos.
É importante ressaltar que não se trata de uma ação isolada, mas do exemplo do processo de construção de um modelo de desenvolvimento fundado no Capitalismo de Estado cujo padrão é a aliança entre o Estado e as empresas monopolistas ou oligopolistas. Não se trata tanto de um juízo de valor, mas de expor as contradições entre o discurso e a prática concreta.
É muito semelhante ao debate econômico. O desenvolvimentismo que vê um crime no valor da taxa básica de juros não vê qualquer problema nas taxas bancárias e na política de estímulo aos oligopólios.
Agora é aguardar a próxima legislatura para acompanhar o desdobramento dessa situação. Certamente algum outro deputado ligado à base de governo dará sequência ao Projeto de Lei.
Demetrio Carneiro