Abaixo a introdução de um texto de uma apresentação feita no 2º Seminário Nacional de Orçamento Público, em maio deste ano. Está voltado para a avaliação de dois relatórios do Banco Mundial envolvendo a gestão fiscal e a eficiência das políticas fiscais no Brasil.
Seu autor é Marcos Mendes(1) e a divulgação original foi do boletim informativo do José R.R. Afonso. Desnecessário falar do excelente trabalho feito pelo economista via seu “informativo”.
O dado importante desta introdução de Mendes é a avaliação do uso político, em termos de poder, do gasto público. Fica muito claro o que podemos chamar de “alinhamento pró-eleitoral por fora das bandeiras dos partidos”.
O melhor exemplo recente foi a votação que deu aos aposentados aumento de mais de 7% e autorizou a extinção do fator previdenciário. O alinhamento da base de apoio do governo com a oposição ficou bem marcado.
É este alinhamento pró-eleitoral que indica a dificuldade de introduzir racionalidades como avaliação de resultados na política fiscal.
A questão fiscal é vista sempre como positiva e instrumento do jogo político de qualquer governo, qualquer tentativa de criar lógicas racionais como a LRF ou a nova Lei das Finanças Públicas acaba esbarrando em enormes dificuldades.
Agora mesmo o debate fiscal x monetário tem muito dessa questão, ao ficar evidente que a política monetária é vista como um “impedimento”, "restrição" à política fiscal que os políticos querem.
Demetrio Carneiro
Nota: O livro acima é uma edição de 2006.
Comentários às minutas de relatórios do Banco Mundial: “Desempenho da Gestão Financeira Pública Federal” e “Avaliação da eficiência da gestão do investimento público”
Antes de comentar o texto dos dois relatórios, vou fazer rápidas considerações sobre como eu vejo o processo de geração de gasto público corrente e de investimentos públicos no Governo Federal. Com base nessa visão geral é que vou fazer os meus comentários.
O ponto de partida para analisar a execução financeira é reconhecer que o modelo político brasileiro se equilibra a partir da expansão do gasto corrente. Isso não é uma opção ideológica deste ou daquele partido. Não é uma política de governo. Ainda que um governo possa optar por acelerar ou tentar frear os gastos, há principalmente um componente autônomo de expansão dos gastos públicos decorrente das características do nosso sistema democrático. A expansão do gasto público “compra” coesão política:
• É muito difícil ganhar eleições ou manter o poder contrariando
sistematicamente setores com grande contingente de eleitores (classes C,D e E), daí a criação e expansão de programas sociais, que tornam o gasto crescente e rígido, e a dificuldade política para conter esse crescimento: Bolsa-Família, LOAS, reajustes reais do salário-mínimo;
• Grande poder de influência e geração de votos por setores organizados, como os aposentados, sindicatos e servidores públicos;
• Grande desigualdade de renda gera preferências bastante diversas entre os eleitores: classes A e B querem pagar menos impostos, querem menos programas sociais e mais bens e serviços que os atendam (tradição de proteção à indústria nacional, subsídios a empresas, etc); em oposição às classes mais baixas que não percebem os impostos que pagam e cujas carências imediatas pedem por mais e mais assistência social.
• Fragmentação de interesses no legislativo, exigindo uso do orçamento para criar coesão da base de apoio político;
• Fragmentação de interesses no interior do Poder Executivo, com ministros de vários partidos, perseguindo objetivos próprios. Bônus e ônus políticos decorrentes da estabilidade macroeconômica concentrados no Presidente da República e ministros da área econômica.
• Inércia de um texto constitucional que fixou muitas obrigações de gastos
• Sistema federativo em que os diferentes entes tentam repassar custos e extrair receitas uns dos outros.
O que resulta daí é uma pressão forte por gastos. A área econômica tem que segurar a despesa no dia-a-dia, controlando a boca do caixa e aumentando impostos sempre que possível. O processo de gestão fiscal acaba mirando dois objetivos: gerar o resultado primário previsto e manter a base aliada coesa.
O que sai prejudicado é a qualidade do gasto. Não há preocupação em fazer análise de custo-benefício do gasto público, não há prioridade à qualidade.
O modelo que eu descrevi puxa o processo decisório para o curto-prazo: libera-se o caixa no dia-a-dia,conforme a disponibilidade de receitas e o comportamento dos parlamentares aliados. Não há qualquer espaço para planejamento de médio e longo prazos, pois a pressão cotidiana por despesa é muito maior que a disponibilidade de receitas.
O relatório enxerga bem essas consequências do modelo político: enfoque no curto-prazo, falta de análise de custo-benefício, despreocupação com o planejamento e falta de análise comparativa dos projetos de investimento, para se escolher o mais eficaz.
Mas não fica claro no relatório que isso decorre de um modelo de funcionamento político do País. Fica a impressão, na leitura dos dois relatórios, que seria possível passar facilmente para um planejamento de longo prazo e abandonar o controle do caixa.
Fica parecendo, na leitura do relatório, que a falta de planejamento é decorrência de alguma miopia dos gestores públicos. Na minha opinião, não é. Mudar a situação atual não é impossível, mas é muito mais difícil do que simplesmente tomar a decisão política de que a partir do próximo exercício vamos passar a obedecer ao PPA, vamos disponibilizar verbas de forma mais uniforme ao longo do ano, para que as unidades possam se programar e melhor gerir seus gastos.
Não quero dizer que nós seremos eternos prisioneiros de um modelo de funcionamento de nossa democracia. Dá para fazer muitos avanços na margem, mas será preciso enfrentar, ao longo dos próximos anos, a tarefa hercúlea de convencer a sociedade brasileira de que não é bom para a maioria das pessoas elevar indefinidamente o valor real do salário-mínimo e das aposentadorias, de que é preciso limitar a autonomia do Judiciário, Ministério Público e Legislativo na definição dos seus gastos, de que é preciso racionalizar a contratação e a remuneração do funcionalismo, de que não se pode fazer sucessivos pacotes de socorro agrícola, etc.
E aí o relatório dá uma contribuição importante, como eu vou apontar mais a frente: a idéia de desenvolver a revisão das despesas. Um trabalho técnico de avaliação da qualidade e eficácia das principais despesas pode ajudar a mudar a despesa em uma direção de mais resultados e menos custos. É preciso deixar claro quais são os custos totais e os benefícios totais, quem ganha e quem perde, com os principais itens de gasto.
Por exemplo: o que gera melhores resultados e menores custos para reduzir a pobreza: o Bolsa-Família ou o reajuste do salário-mínimo? Quais os custos totais e os benefícios totais para a sociedade do reajuste das aposentadorias? Qual a diferença, no longo prazo, entre investir R$ 1,00 em aposentadorias e R$ 1,00 em educação básica?
Estudos de avaliação de despesa feitos com qualidade, sem viés político, podem ajudar imensamente a remodelar o gasto público. Mas só os estudos não bastam. Será preciso jogar imenso peso político para tentar remodelar o gasto na direção apontada pelos estudos.
Outro ponto fundamental, para encerrar esses comentários iniciais, antes de entrar nos pontos específicos dos relatórios, é sobre como encadear a reforma do gasto público. A minha opinião é de que o caminho deve ser do curto para o longo prazo.
Precisamos, primeiro, organizar e regularizar o processo orçamentário anual. Tentar tirar o orçamento da lógica atual de politização da estimativa de receita e contingenciamento de gastos. Uma vez que se consiga fazer um orçamento possível de se cumprir, aí partimos para a reforma do planejamento de médio e longo prazo. Não é possível tornar efetivo nenhum tipo de planejamento que tenha que coexistir com o modelo de controle do caixa via contingenciamento.
(1) Consultor Legislativo do Senado Federal. Doutor em Economia IPE/USP