A democracia, enquanto governo do povo, não está presa a fórmulas, mas sim a conquistas que esse próprio povo encerra em seu drama ou dilema histórico, sendo a medida de democracia aferida pelo grau de participação popular na vida de dado Estado, bem como da forma e respeito à organização estruturante, que fatie o poder a ponto de fatiar a autoridade.
Entra Governo, sai ou continua Governo, o povo brasileiro é testemunha e vítima ao mesmo de execução orçamentária com realização de despesas públicas relacionadas a obras e compras fantasmas, que destinam recursos públicos ao ralo da corrupção. Mas o Congresso Nacional discute uma Lei de Qualidade Fiscal.
Tramita no Senado Federal o Projeto de Lei Complementar do Senado n° 229, de 2009, que estabelece normas gerais sobre plano, orçamento, controle e contabilidade pública, voltadas para a responsabilidade no processo orçamentário e na gestão financeira e patrimonial, altera dispositivos da Lei Complementar nº 101 de 4 de maio de 2000 a fim de fortalecer a gestão fiscal responsável, e dá outras providências, e o Projeto de Lei do Senado n° 248, de 2009, que estabelece normas gerais de finanças públicas voltadas para a qualidade na gestão e dá outras providências.
Tais projetos, hoje reunidos e batizados de Lei de Qualidade Fiscal, pretendem uma renovação da Lei 4320/64, a conhecida Lei do Orçamento, texto fundamental do ramo do Direito Público conhecido como Direito Financeiro. Ocorre, todavia, que o direito, com seus ramos, somente pode ser criado ou interpretado com diálogo entre os ramos, um relacionamento dialético, para, em sincronia, manter sua própria uniformidade.
A Lei de Qualidade Fiscal possui avanços, mas no que é fundamental para o combate às obras e compras fantasmas, continua a se manter hermética, sem querer se relacionar com a evolução histórica ocorrida desde 1964 e sem dialogar com outros ramos do Direito Público.
Falamos do processo da despesa pública porque na obra Despesa Pública e Corrupção no Brasil, editada pela Fundação Astrojildo Pereira e a Editorial Abaré em 2009, desenvolvemos o argumento que as obras e compras fantasmas ocorrem porque o processo da despesa pública é defeituoso. A Lei 4320, nos artigos 60, 63 e 64, tal qual a Lei de Qualidade Fiscal no art. 73, citam que a execução da despesa pública ocorre em três fases, o empenho a liquidação e o pagamento.
As liquidações, fase de verificação do que foi comprado ou contratado, antes do pagamento, porque às vezes fraudulentas, são cúmplices das obras e compras fantasmas. As liquidações fraudulentas já começam a preocupar os agentes administrativos dos setores financeiros dos órgãos públicos, porque tal, como ato administrativo, sujeita-os a acusações de improbidade administrativa e crime contra as finanças públicas.
Entretanto, a Constituição Federal de 1988, no seu art. 74, quando criou o Sistema de Controle Interno, que parece só agora será regulamentado tal sistema pela Lei de Qualidade Fiscal, naquele momento constitucional, o legislador, no inciso II do referido art. 74, destinou ao Controle Interno a verificação da Legalidade do gasto público, mas, por força do art. 37 da própria Constituição Federal, está o controlador encarregado também da economicidade e da eficiência do gasto público.
Se a Constituição Federal assim comanda, não há outra alternativa senão a participação do órgão de controle interno no processo da despesa pública, isso antes do pagamento, pois sua missão é preventiva inclusive com a possibilidade de acusação de responsabilização solidária ao controlador que confirma a ilegalidade e não a comunica ao Tribunal de Contas.
Alguém já ouviu falar em acusação dessa natureza? Isso não ocorre porque o texto legal é esquecido, pisoteado, sempre que ocorrem obras e compras fantasmas, porque não há sequer uma preocupação com a autonomia do Controle Interno. Os governantes não querem criar obstáculos aos seus arbítrios, muito mais o fortalecimento de um órgão que está dentro do órgão.
Falha o Tribunal de Contas e o Ministério Público ao não perscrutar da verdadeira atuação dos órgãos de controle interno na administração pública da União, Estados e Municípios e na conscientização aos que ora exercem suas funções, de que devem comunicar ao Tribunal de Contas os erros, sob pena de responsabilidade solidária, como previsto no §1º do art. 74 da Constituição Federal.
Aliás, se houvesse um movimento no sentido de investigação sobre a atuação do controle interno, a sociedade descobriria que esse órgão de extração constitucional, em nível federal está amarrado aos arbítrios dos gestores, por isso ocorrem obras, compras e até mesmo folhas de pagamento secretas.
Mas o grosso mesmo da apuração, nos Estados e Municípios, faria aflorar um sem fim de ilegalidades, uma vez que podemos encontrar até mesmo Secretarias Estaduais que não dispõem de um órgão de controle interno, que deve estar interligado aos demais de sua esfera de poder pela Controladoria, um sonho.
Assim, a Lei de Qualidade Fiscal quando se reporta ao processo da despesa pública, replica um texto com uma visão no passado e sem uma preocupação de relacionamento dialético entre os ramos do direito público, esquecendo que o verdadeiro compromisso em matéria de direito financeiro, tem haver com a maior participação dos órgãos dos poderes e das instituições no processo da despesa pública.
Aliás, Democracia supõe divisão de poderes, repartição de competências e atribuições, freios e contrapesos. Uma despesa pública que não contenha a participação do controle interno, primeiro é contestada por ser antidemocrática, mas não esqueçamos que ela, por comando constitucional, torna-se também sujeita a argumentos de ilegalidade na sua forma, viciando a execução orçamentária.
*Promotor de Justiça do Estado do Piauí, Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade Católica de Pernambuco, Pós-graduado em Relações Internacionais pela
Universidade de Brasília e Mestre em Direito Internacional Econômico e Tributário pela Universidade Católica de Brasília. É escritor de várias obras sobre finanças públicas.