Aos ilustres amigos que pretendem “interpretar” o sentimento da esquerda ou a vontade das massas e saem por ai criticando “os juros altos” ou o “câmbio que prejudica nossa indústria” deixo como sugestão o texto abaixo publicado no Valor Econômico.
Pessoalmente já esgotei meu repertório. Pode ser que escrito o argumento por outros talvez prestem atenção e se dêem conta de que num ano eleitoral precisam de argumentos mais bem elaborados.
No fundo essa fala fácil de criticar no geral sem procurar entender as origens ou tratar das verdadeiras soluções não deixa de ser um formato de vender dificuldades para oferecer facilidades ou, quem sabe, soluções mágicas, atalhos...
Talvez se prestassem atenção naquela pesquisa que relata a reação das classes de menor renda à tributação excessiva tivessem assuntos mais interessantes para tratar. Apenas uma sugestão, claro.
Demetrio Carneiro
Câmbio, poupança e os vendedores de ilusão
Pedro Cavalcanti Ferreira e Renato Fradelli Cardoso
29/01/2010
Muitos economistas têm defendido a adoção de uma taxa real de câmbio desvalorizada como estratégia de desenvolvimento, no intuito de preservar a competitividade de vários setores industriais nacionais ameaçados pela valorização cambial. Como exemplo de sucesso a ser copiado apresentam os países asiáticos, onde o acelerado crescimento econômico vem acompanhado de uma taxa real de câmbio competitiva, sem pressão inflacionária. Teria o Brasil condições de emular a estratégia asiática, sem provocar a elevação da inflação?
A resposta à pergunta acima é categoricamente negativa, pois o modelo asiático está calcado em uma alta taxa de poupança doméstica, inexistente no Brasil. É importante compreender por que, de posse de uma poupança doméstica elevada, os bancos centrais asiáticos conseguem facilmente manter a taxa real de câmbio desvalorizada sem provocar inflação. Um banco central que decida manter a taxa real de câmbio mais desvalorizada do que o determinado pelo mercado precisará comprar dólares dos exportadores. Se as compras forem pagas com emissão monetária, cedo ou tarde surgirão pressões inflacionárias. A fim de evitar a inflação, a emissão monetária decorrente da acumulação de divisas terá que ser esterilizada mediante venda de títulos do próprio banco central - ou de títulos do governo que estejam em seu ativo. Quando a poupança doméstica é alta, esses títulos são facilmente colocados no mercado interno, mesmo a taxas de juros baixas, pois há poupadores dispostos a comprá-los. Entretanto, diante de uma poupança doméstica baixa, o banco central não consegue neutralizar a pressão monetária provocada pela acumulação de divisas, gerando inflação.
Como exemplo de comparação com o caso brasileiro, tome-se a China, país cuja poupança doméstica - pública mais privada - alcança 45% do PIB, enquanto no Brasil ela é de apenas 17%. A poupança pública chinesa é elevada por dois motivos. Primeiro porque o governo não precisa arcar com elevadas despesas previdenciárias, pois lá não existe um programa previdenciário em regime de repartição deficitário como aqui. No Brasil, diferentemente, apesar de sua população relativamente jovem, os gastos com aposentadorias e pensões - INSS e servidores públicos -, transferem a gigantesca fração de 12% do PIB às famílias, equivalente a um terço da enorme carga tributária de 36% do PIB brasileiro.
O segundo motivo é o fato de que, nos principais setores da economia chinesa, há uma empresa hegemônica estatal que, por operar como monopolista - ou quase isso - tem alta margem de lucro, que contribui para a poupança pública. Vale lembrar que, num país com mercado de capitais em estágio embrionário, é natural que as empresas estatais chinesas dependam de lucros retidos para financiar seus investimentos. Ademais, num regime politicamente fechado como o chinês, o governo desconsidera pressões populares por redução de margens de suas estatais. O mesmo fenômeno se observava na década de 1970 no Brasil. No Brasil democrático atual, as estatais são frequentemente chamadas a dar sua contribuição para a redução das pressões inflacionárias, reduzindo a poupança pública.
Quanto à poupança privada chinesa, ela é alta porque a inexistência de um sistema previdenciário público estimula a poupança pessoal. Diante da perspectiva de insuficiência de renda na velhice, o chinês humilde que migrou do interior para trabalhar nas grandes cidades opta voluntariamente por poupar metade de sua renda do trabalho. Como consequência, o consumo pessoal chinês é de apenas 35% do PIB, cerca de metade da fração observada no Brasil.
Os chineses poupam muito e os brasileiros muito pouco. Isso não ocorre porque os brasileiros são intrinsecamente diferentes dos chineses, mas porque reagem a incentivos econômicos muito distintos. Um trabalhador brasileiro de baixa renda, caso atue no setor formal, não tem estímulo a poupar, pois receberá aposentadoria integral do INSS. Se estiver no setor informal, terá direito ao LOAS, um benefício mensal de um salário mínimo - equivale a mais de um terço da renda per capita nacional -, mesmo que nunca tenha contribuído para o INSS. No caso do trabalhador de classe média, se for servidor público, não terá incentivo a poupar, pois receberá aposentadoria integral. Somente os trabalhadores da classe média alta do setor privado têm incentivos a poupar, pois receberão do INSS uma renda mensal inferior ao salário pré-aposentadoria.
Os dólares comprados pelo banco central chinês são aplicados no exterior, sobretudo em títulos da dívida pública norte-americana, o que explica as gigantescas reservas internacionais chinesas. Do ponto de vista macroeconômico, o banco central chinês atua como um intermediário financeiro entre o poupador chinês e o tesouro norte-americano. Isso significa que, no futuro, quem pagará a aposentadoria do trabalhador chinês que hoje poupa metade de sua renda será o contribuinte norte-americano das próximas décadas.
O Brasil só poderia cogitar uma estratégia de crescimento do tipo asiática se adotasse medidas destinadas a aumentar significativamente a poupança doméstica. Mas isso exigiria um novo pacto intergeracional completamente distinto daquele fixado pela Constituição de 1988. As gigantescas pressões pelos aumentos de gastos sociais observados nas duas últimas décadas, a resistência à reforma de nosso sistema previdenciário concentrador de renda, o tabu em relação à cobrança de mensalidade no ensino superior público, para citar apenas alguns exemplos de compromissos constitucionais do Tesouro, refletem a opção da sociedade brasileira por um modelo de desenvolvimento distinto do asiático.
O espetacular crescimento dos tigres asiáticos baseou-se na conjugação de enorme taxa de poupança doméstica, elevado investimento em educação e em infraestrutura, e economia aberta ao comércio internacional. Ao benefício do crescimento acelerado e baixa inflação correspondeu o sacrifício do adiamento do consumo, o esforço educacional e a resistência aos lobbies protecionistas.
Os entusiastas do modelo de crescimento econômico asiático deveriam apresentar também seus custos. Não podem vender ilusões à sociedade brasileira. Além da valorização cambial, há outras dificuldades enfrentadas diariamente pelos empresários brasileiros, como a voracidade tributária do Estado, o cipoal de regulações impostas por diversos órgãos das três esferas de governo, os achaques de fiscais que vendem facilidades criadas por aquelas regulações, a má qualidade da mão de obra, a lentidão da Justiça, o elevado spread bancário, para citar apenas algumas.
Por que eleger a taxa de câmbio a solução miraculosa de toda essa gama de distorções resumida na expressão Custo Brasil? Em vez de apresentarem o câmbio real desvalorizado como o ovo de Colombo do crescimento, a fórmula mágica e indolor que geraria crescimento sem sacrifícios, eles deveriam defender as eternamente adiadas reformas estruturais destinadas a aumentar a poupança pública e privada no Brasil.