A proposta que transita pelo Senado Federal, permitindo que 50% das vagas do sistema público universitário sejam oferecidas a alunos egressos do sistema público do ensino básico (fundamental + médio), trás de volta para o cenário o debate sobre cotas como política pública de combate as distorções econômicas e sociais de nosso país.
A intenção da política de cotas tem muito a haver com o que se conceitua como "falha de mercado", quer dizer, o mercado é insuficiente para garantir situações de equidade, cabendo o Estado corrigir esta tendência por meio de políticas públicas de acesso privilegiado aos mais pobres, às minorias, aos mais excluídos etc. O problema para os defensores da correção das falhas de mercado é que existem também as falhas de governo. Por exemplo, o Estado não controla o resultado final de suas políticas. Este é um problema no caso das cotas, conforme ficará claro na leitura do texto do José.
Para efeito de discurso eleitoral a cota pode ser uma boa solução, pois emociona e motiva as pessoas a votar, mas vistas no mundo real e a partir da avaliação objetiva dos resultados podem mostrar-se um equívoco.
Demetrio Carneiro
O DEBATE SOBRE COTAS
José Carneiro da Cunha Oliveira[1]
O
debate que iniciarei será em parte teórico e em parte empírico, por vezes os
dados empíricos serão analisados, por vezes serão simplesmente apresentados
após uma lista de argumentos usados pelos defensores e pelos críticos dos
sistemas de cota. Os dados que possuo, e que apresentarei em “primeira mão”
para vocês, são da Universidade de Brasília, centro pioneiro no país na adoção
de políticas de cotas, especificamente cotas raciais, por isso muitas das
conclusões empíricas estarão limitadas a esse tipo de cota e a essa experiência
específica, cuidados devem ser tomados para a generalização dos resultados,
que, de qualquer forma, podem ser (os dados) muito úteis para a melhoria dos
debates sobre esse tipo de política no país.
-Um Lamento Inicial
Apesar do enorme destaque
recebido na imprensa, nas mesas de bar e nos debates político e estudantil, o
uso do sistema de cotas é pouco estudado no país. Muitos dos que debatem o
assunto recorrem de maneira limitada a literatura e a rica experiência
internacional no assunto. Assustadoramente, pessoas com forte influência tanto
na formação da política quanto na formação das opiniões demonstram pouco, ou
nenhum, conhecimento sobre o que aconteceu no mundo, e abunda o descaso em
relação a análise empírica da experiência brasileira.
Talvez por preguiça, talvez por
ingenuidade ou outro motivo, ao se citar a experiência internacional é muito
comum se ouvir referência apenas às políticas adotadas nos Estados Unidos, país
que não é nem pioneiro, nem líder na adoção de tais políticas. Nações como
Índia, Malasia, Sri Lanka e Nigéria foram muito, mas muito mais longe e,
principalmente no caso da Índia, possuem dados muito mais detalhados e,
destaque para o caso da Malásia, consequências muito mais extremas.
-Medidas Ingênuas, ou Nem
Tanto...
Alguns esclarecimentos teóricos
iniciais são úteis ao debate posterior, vamos lá.
A princípio qualquer política de
cota é, para a sociedade, um jogo de soma zero. Deixando isso mais claro, o
impacto inicial desse tipo de política é em nível individual e, nesse caso,
temos sempre dois indivíduos envolvidos na cota, aquele que recebe a vaga
graças ao sistema implantado e aquele que perde a vaga. Ao se somar o ganho de
bem estar de um com a perda do outro, o resultado é, a princípio, zero para a
sociedade. Ou seja, números do tipo: “100.000 já foram beneficiados pelo
sistema de cotas” não significam que tal política melhorou a sociedade pelo
simples fato de serem, necessariamente (quando a cota é uma restrição ativa),
acompanhados pela frase oposta: “100.000 já foram prejudicados pelo sistema de
cotas”.
Todo o debate sobre se tal
política melhora ou não a sociedade está nas externalidades provocadas por ela.
Ou seja, mais do que direta, a ação efetiva das cotas (positiva ou negativa) é
indireta e, por isso, bem mais difícil de ser medida, além de variar com o tipo
de cota estabelecida (racial, social, educacional, de emprego etc).
O conjunto de argumentos
favorável a esse tipo de política muda de acordo com o país e a natureza das
cotas, porém é comum que haja algum tipo de discurso, muitas vezes genérico,
sobre injustiças históricas que poderiam ser ao menos atenuadas pela adoção de
políticas de cota.
Para o desempate do jogo de soma
zero, teríamos então ao menos dois lados: o ganho de bem estar geral produzido
pela correção das distorções históricas versus o possível uso ineficiente do
recurso social alocado para o cotista em detrimento daquele com maior “mérito
relevante”.
“Mérito relevante” deve ser
entendido como o estrito conjunto de habilidades técnicas necessárias ao
desenvolvimento da referida habilidade. Dado que defini o termo, não mais
empregarei as aspas.
Nessa linha, o tipo de recurso
destinado à política de cotas deveria nortear o debate. Uso “deveria” pelo
simples fato de que isso muitas vezes não acontece; debate-se cotas no serviço
público da mesma forma e com os mesmos argumentos usados nas cotas
educacionais, o que é um erro crasso.
Educação é uma política social em
si, o objetivo da oferta pública de educação é subsidiá-la e, assim, aumentar o
nível educacional ótimo escolhido pela família. Por sua vez, esse maior nível
educacional abre portas no mercado de trabalho que permitem uma posterior
melhoria de renda e a emancipação do indivíduo beneficiado.
O emprego público não é uma
política social em si, mas sim um meio para se desenvolver políticas sociais.
Quando uma pessoa com menos méritos relevantes ocupa uma vaga no serviço
público, a capacidade do Estado em prestar um bom serviço para o restante da
população é reduzida. Logo, nesse tipo de cota, é muito mais fácil que os
impactos negativos superem os positivos do que no caso da educação.
Como consideração
teórico-empírico final, é útil destacar que em regra políticas de cota
beneficiam sempre os elementos mais favorecidos do grupo menos favorecido (por
isso beneficiado pela cota). Usemos como exemplo as cotas para deficientes, em
regra não são os deficientes graves, aqueles cuja deficiência realmente afeta a
capacidade de estudo e colocação profissional, mas sim os que possuem
deficiências menos incapacitantes e que em nada afetam seu acesso às
oportunidades de estudo e trabalho os que ficam com as vagas destinadas aos
deficientes físicos. Aqueles que são realmente vulneráveis e para os quais a
política foi efetivamente implementada ficam longe dos melhores empregos.
-Cotas Raciais na UnB: alguns
resultados iniciais.
Bem, muitos daqueles que chegaram
até aqui devem estar muito interessados nos resultados empíricos. Lembro
novamente que esses são dados preliminares, ao longo das próximas semanas novos
dados e resultados mais apurados serão disponibilizados.
Os resultados de agora tratam do
segundo vestibular do ano de 2011 (2/2011).
Nessa seleção foram cerca de
24.972 candidatos, sendo que os dados fornecida pela UnB apresentavam
informações sobre apenas 22.885 inscritos, dos quais aproximadamente 1.914
optaram por concorrer como cotistas (8,36% dos candidatos). Na amostra
disponível foram aprovados 4.749 candidatos, para um total divulgado de 4.016
vagas, em 4 chamadas. Desses, 699 eram cotistas, mas apenas 352 tiveram
rendimento abaixo da nota de corte externa ao programa de cotas.
Dos cotistas aprovados, 403
declaram ser oriundos de escolas públicos, sendo que desses 203 (50,37%)
tiveram nota final inferior à nota de corte externa ao programa. Dos 296
oriundos de escolas privadas, 149 (50,33%) tiveram rendimento inferior à nota
de corte externa ao programa.
Com relação a renda, 77 não
informaram a renda familiar; 30 declararam renda superior a 20 salários mínimos
(dos quais 16 tiveram nota inferior à nota de corte externa ao programa); 24
afirmaram ter renda entre 14 e 20 salários mínimos (11 tiveram nota abaixo da
de corte); 60 declaram renda entre 10 e 14 salários (29 abaixo da nota de
corte); 124 declararam renda entre 6 e 10 salários (68 abaixo da nota de
corte); e, 384 declararam renda inferior a 6 salários (188 abaixo da nota de
corte).
Sobre a escolaridade dos pais,
315 (45,06%) têm ao menos um dos pais com formação superior completa, sendo que
59 não sabem a escolaridade do pai e 22 não sabem a escolaridade da mãe.
Quanto a raça/cor, 2 se declaram
brancos, 480 negros, 1 amarelo, 207 pardos, 2 indígenas e 6 não deram
informação. Desses, 243 autodeclarados negros e 107 autodeclarados pardos
tiveram nota inferior a nota de corte externa ao programa de cotas.
Quanto ao questionamento “Você se
declara negro”, 680 responderam que sim, inclusive os dois que se declaram
indígenas na autodeclaração de raça/cor.
Para finalizar, nada melhor que
um olhar mais detalhado no curso mais disputado da UnB, medicina. Dos 41
aprovados nas diferentes chamadas, 7 eram cotistas, sendo que 1 obteve nota
superior a nota de corte externa ao programa de cotas.
Com relação aos cotistas que
precisaram da redução na nota de corte, dividamos a análise.
Cotista 1: 21 candidatos tiveram
rendimento melhor e não foram aprovados. Desses, 3 eram oriundos de escolas
públicas, 1 tinha menor renda e 4 eram pardos. O cotista 4 se declarou pardo e
oriundo de escola particular.
Cotista 2: Oriundo de escola
particular, 63 não cotistas tiveram rendimento melhor e não foram aprovados.
Desses, 7 eram oriundos de escola pública, 10 eram mais pobres.
Cotistas 3: Oriundo de escola
partícular, 94 não cotistas tiveram rendimento melhor e não foram aprovados.
Desses, 12 tinham renda familiar menor, 12 eram pardos e 8 se autodeclaram
negros, mas não optaram pelas cotas.
Cotista 4: Oriundo de escola
particular, 104 candidatos tiveram rendimento melhor e não foram aprovados.
Desses, 11 eram oriundos de escola pública, 24 eram mais pobres e 13 se
autodeclaram pardos.
Cotista 5: Oriundo de escola
particular declarou renda familiar superior a 20 salários mínimos, 148
candidatos não cotistas tiveram rendimento melhor, mas não foram aprovados.
Desses, 26 eram pardos e cerca de 130 mais pobres.
Cotista 6: Oriundo de escola
particular, 152 candidatos não cotistas tiveram rendimento melhor.
Como último comentário, aproveito
o exemplo do Cotista 1, que se autodeclarou pardo. Em toda sociedade
multiétnica programas como o da UnB originam um fenômeno chamado
reclassificação. Nesse caso, parte considerável da população possui traços de
múltiplos grupos étnicos e pode se reclassificar de acordo com seu interesse.
Como pode ser visto, um candidato se reclassificou, apesar de identificar como
pardo, se autodeclarou negro, utilizou a cota e recebeu a vaga no lugar de
vários candidatos também pardos que tiveram melhor desempenho no vestibular.
Em breve retorno com mais dados e
teorias, da próxima vez a análise detalhada será de outros dois cursos
disputados: Engenharia Civil e Direito.
[1] Economista, Doutor e professor do Departamento de Administração da UNB