sexta-feira, 17 de agosto de 2012

ESQUENTANDO O DEBATE SOBRE COTAS


A proposta que transita pelo Senado Federal, permitindo que 50% das vagas do sistema público universitário sejam oferecidas a alunos egressos do sistema público do ensino básico (fundamental + médio), trás de volta para o cenário o debate sobre cotas como política pública de combate as distorções econômicas e sociais de nosso país.

A intenção da política de cotas tem muito a haver com o que se conceitua como "falha de mercado", quer dizer, o mercado é insuficiente para garantir situações de equidade, cabendo o Estado corrigir esta tendência por meio de políticas públicas de acesso privilegiado aos mais pobres, às minorias, aos mais excluídos etc. O problema para os defensores da correção das falhas de mercado é que existem também as falhas de governo. Por exemplo, o Estado não controla o resultado final de suas políticas. Este é um problema no caso das cotas, conforme ficará claro na leitura do texto do José.

Para efeito de discurso eleitoral a cota pode ser uma boa solução, pois emociona e motiva as pessoas a votar, mas vistas no mundo real e a partir da avaliação objetiva dos resultados podem mostrar-se um equívoco.

Demetrio Carneiro

O DEBATE SOBRE COTAS

José Carneiro da Cunha Oliveira[1]

O debate que iniciarei será em parte teórico e em parte empírico, por vezes os dados empíricos serão analisados, por vezes serão simplesmente apresentados após uma lista de argumentos usados pelos defensores e pelos críticos dos sistemas de cota. Os dados que possuo, e que apresentarei em “primeira mão” para vocês, são da Universidade de Brasília, centro pioneiro no país na adoção de políticas de cotas, especificamente cotas raciais, por isso muitas das conclusões empíricas estarão limitadas a esse tipo de cota e a essa experiência específica, cuidados devem ser tomados para a generalização dos resultados, que, de qualquer forma, podem ser (os dados) muito úteis para a melhoria dos debates sobre esse tipo de política no país.

-Um Lamento Inicial

Apesar do enorme destaque recebido na imprensa, nas mesas de bar e nos debates político e estudantil, o uso do sistema de cotas é pouco estudado no país. Muitos dos que debatem o assunto recorrem de maneira limitada a literatura e a rica experiência internacional no assunto. Assustadoramente, pessoas com forte influência tanto na formação da política quanto na formação das opiniões demonstram pouco, ou nenhum, conhecimento sobre o que aconteceu no mundo, e abunda o descaso em relação a análise empírica da experiência brasileira.

Talvez por preguiça, talvez por ingenuidade ou outro motivo, ao se citar a experiência internacional é muito comum se ouvir referência apenas às políticas adotadas nos Estados Unidos, país que não é nem pioneiro, nem líder na adoção de tais políticas. Nações como Índia, Malasia, Sri Lanka e Nigéria foram muito, mas muito mais longe e, principalmente no caso da Índia, possuem dados muito mais detalhados e, destaque para o caso da Malásia, consequências muito mais extremas.

-Medidas Ingênuas, ou Nem Tanto...

Alguns esclarecimentos teóricos iniciais são úteis ao debate posterior, vamos lá.

A princípio qualquer política de cota é, para a sociedade, um jogo de soma zero. Deixando isso mais claro, o impacto inicial desse tipo de política é em nível individual e, nesse caso, temos sempre dois indivíduos envolvidos na cota, aquele que recebe a vaga graças ao sistema implantado e aquele que perde a vaga. Ao se somar o ganho de bem estar de um com a perda do outro, o resultado é, a princípio, zero para a sociedade. Ou seja, números do tipo: “100.000 já foram beneficiados pelo sistema de cotas” não significam que tal política melhorou a sociedade pelo simples fato de serem, necessariamente (quando a cota é uma restrição ativa), acompanhados pela frase oposta: “100.000 já foram prejudicados pelo sistema de cotas”.
Todo o debate sobre se tal política melhora ou não a sociedade está nas externalidades provocadas por ela. Ou seja, mais do que direta, a ação efetiva das cotas (positiva ou negativa) é indireta e, por isso, bem mais difícil de ser medida, além de variar com o tipo de cota estabelecida (racial, social, educacional, de emprego etc).

O conjunto de argumentos favorável a esse tipo de política muda de acordo com o país e a natureza das cotas, porém é comum que haja algum tipo de discurso, muitas vezes genérico, sobre injustiças históricas que poderiam ser ao menos atenuadas pela adoção de políticas de cota.

Para o desempate do jogo de soma zero, teríamos então ao menos dois lados: o ganho de bem estar geral produzido pela correção das distorções históricas versus o possível uso ineficiente do recurso social alocado para o cotista em detrimento daquele com maior “mérito relevante”.

“Mérito relevante” deve ser entendido como o estrito conjunto de habilidades técnicas necessárias ao desenvolvimento da referida habilidade. Dado que defini o termo, não mais empregarei as aspas.
Nessa linha, o tipo de recurso destinado à política de cotas deveria nortear o debate. Uso “deveria” pelo simples fato de que isso muitas vezes não acontece; debate-se cotas no serviço público da mesma forma e com os mesmos argumentos usados nas cotas educacionais, o que é um erro crasso.

Educação é uma política social em si, o objetivo da oferta pública de educação é subsidiá-la e, assim, aumentar o nível educacional ótimo escolhido pela família. Por sua vez, esse maior nível educacional abre portas no mercado de trabalho que permitem uma posterior melhoria de renda e a emancipação do indivíduo beneficiado.

O emprego público não é uma política social em si, mas sim um meio para se desenvolver políticas sociais. Quando uma pessoa com menos méritos relevantes ocupa uma vaga no serviço público, a capacidade do Estado em prestar um bom serviço para o restante da população é reduzida. Logo, nesse tipo de cota, é muito mais fácil que os impactos negativos superem os positivos do que no caso da educação.

Como consideração teórico-empírico final, é útil destacar que em regra políticas de cota beneficiam sempre os elementos mais favorecidos do grupo menos favorecido (por isso beneficiado pela cota). Usemos como exemplo as cotas para deficientes, em regra não são os deficientes graves, aqueles cuja deficiência realmente afeta a capacidade de estudo e colocação profissional, mas sim os que possuem deficiências menos incapacitantes e que em nada afetam seu acesso às oportunidades de estudo e trabalho os que ficam com as vagas destinadas aos deficientes físicos. Aqueles que são realmente vulneráveis e para os quais a política foi efetivamente implementada ficam longe dos melhores empregos.

-Cotas Raciais na UnB: alguns resultados iniciais.
Bem, muitos daqueles que chegaram até aqui devem estar muito interessados nos resultados empíricos. Lembro novamente que esses são dados preliminares, ao longo das próximas semanas novos dados e resultados mais apurados serão disponibilizados.

Os resultados de agora tratam do segundo vestibular do ano de 2011 (2/2011).

Nessa seleção foram cerca de 24.972 candidatos, sendo que os dados fornecida pela UnB apresentavam informações sobre apenas 22.885 inscritos, dos quais aproximadamente 1.914 optaram por concorrer como cotistas (8,36% dos candidatos). Na amostra disponível foram aprovados 4.749 candidatos, para um total divulgado de 4.016 vagas, em 4 chamadas. Desses, 699 eram cotistas, mas apenas 352 tiveram rendimento abaixo da nota de corte externa ao programa de cotas.

Dos cotistas aprovados, 403 declaram ser oriundos de escolas públicos, sendo que desses 203 (50,37%) tiveram nota final inferior à nota de corte externa ao programa. Dos 296 oriundos de escolas privadas, 149 (50,33%) tiveram rendimento inferior à nota de corte externa ao programa.

Com relação a renda, 77 não informaram a renda familiar; 30 declararam renda superior a 20 salários mínimos (dos quais 16 tiveram nota inferior à nota de corte externa ao programa); 24 afirmaram ter renda entre 14 e 20 salários mínimos (11 tiveram nota abaixo da de corte); 60 declaram renda entre 10 e 14 salários (29 abaixo da nota de corte); 124 declararam renda entre 6 e 10 salários (68 abaixo da nota de corte); e, 384 declararam renda inferior a 6 salários (188 abaixo da nota de corte).

Sobre a escolaridade dos pais, 315 (45,06%) têm ao menos um dos pais com formação superior completa, sendo que 59 não sabem a escolaridade do pai e 22 não sabem a escolaridade da mãe.

Quanto a raça/cor, 2 se declaram brancos, 480 negros, 1 amarelo, 207 pardos, 2 indígenas e 6 não deram informação. Desses, 243 autodeclarados negros e 107 autodeclarados pardos tiveram nota inferior a nota de corte externa ao programa de cotas.

Quanto ao questionamento “Você se declara negro”, 680 responderam que sim, inclusive os dois que se declaram indígenas na autodeclaração de raça/cor.
Para finalizar, nada melhor que um olhar mais detalhado no curso mais disputado da UnB, medicina. Dos 41 aprovados nas diferentes chamadas, 7 eram cotistas, sendo que 1 obteve nota superior a nota de corte externa ao programa de cotas.

Com relação aos cotistas que precisaram da redução na nota de corte, dividamos a análise.

Cotista 1: 21 candidatos tiveram rendimento melhor e não foram aprovados. Desses, 3 eram oriundos de escolas públicas, 1 tinha menor renda e 4 eram pardos. O cotista 4 se declarou pardo e oriundo de escola particular.

Cotista 2: Oriundo de escola particular, 63 não cotistas tiveram rendimento melhor e não foram aprovados. Desses, 7 eram oriundos de escola pública, 10 eram mais pobres.

Cotistas 3: Oriundo de escola partícular, 94 não cotistas tiveram rendimento melhor e não foram aprovados. Desses, 12 tinham renda familiar menor, 12 eram pardos e 8 se autodeclaram negros, mas não optaram pelas cotas.

Cotista 4: Oriundo de escola particular, 104 candidatos tiveram rendimento melhor e não foram aprovados. Desses, 11 eram oriundos de escola pública, 24 eram mais pobres e 13 se autodeclaram pardos.

Cotista 5: Oriundo de escola particular declarou renda familiar superior a 20 salários mínimos, 148 candidatos não cotistas tiveram rendimento melhor, mas não foram aprovados. Desses, 26 eram pardos e cerca de 130 mais pobres.

Cotista 6: Oriundo de escola particular, 152 candidatos não cotistas tiveram rendimento melhor.
Como último comentário, aproveito o exemplo do Cotista 1, que se autodeclarou pardo. Em toda sociedade multiétnica programas como o da UnB originam um fenômeno chamado reclassificação. Nesse caso, parte considerável da população possui traços de múltiplos grupos étnicos e pode se reclassificar de acordo com seu interesse. Como pode ser visto, um candidato se reclassificou, apesar de identificar como pardo, se autodeclarou negro, utilizou a cota e recebeu a vaga no lugar de vários candidatos também pardos que tiveram melhor desempenho no vestibular.

Em breve retorno com mais dados e teorias, da próxima vez a análise detalhada será de outros dois cursos disputados: Engenharia Civil e Direito.

[1] Economista, Doutor e professor do Departamento de Administração da UNB