quarta-feira, 2 de março de 2011

O SENADO SERVE PARA O QUÊ?

Abaixo um texto enviado por Helena Wernek. Foi publicado originalmente na excelente Revista Eletrônica de Estudos Urbanos e Regionais “@metrolope”, publicação dos alunos de pós-graduação dos programas vinculados ao Observatório das Metrópoles.

No texto me chamou a atenção a idéia de uma dinâmica cultural e histórica no estilo “conciliação que leva para a reforma” e o citação do papel do Senado como o lugar das oligarquias na política tradicional.
Na realidade eu leria o Senado como o lugar das oligarquias regionais. Como raciocino a estrutura de poder regional é quem faz a transmissão e interpretação da estrutura de poder federal para as estruturas dos poderes locais. Foi assim que interpretei num texto que escrevi recentemente para a Revista Política Democrática que aborda a relação entre Federação, Regionalidade, e Poder Local.
Na verdade, na medida em que essas oligarquias regionais fazem parte desse pacto de poder atual, revigorado e reforçado no processo que culminou na eleição de Dilma, o Senado passa a assumir importância e ele mesmo se revigora.
Não por acaso o PT decidiu concentrar esforços lá. Na verdade eu diria que a culminação de um processo que trata da consolidação das oligarquias regionais sob a aliança-tutela do PT, que, certamente está perfeitamente adequado para assumir seu papel nos espaços abertos que existirem, criando novas oligarquias regionais.

Enfim, a questão do Senado e o papel de fato que exerce no jogo de poderes é assunto relevante a faz parte de todo um debate Federativo inexistente que enfraquece de forma extrema a República já tão desequilibrada na relação entre seus poderes.
Por isso mesmo tem sentido apresentar o ótimo texto de Pedro Célio Alves Borges.

Demetrio Carneiro

O Senado e os interesses das unidades territoriais

Por Pedro Célio Alves Borges*

Assegurar a integridade do imenso território nacional é a justificativa principal para o sistema bicameral brasileiro, desde 1891. A idéia hoje permanece, sem grandes interferências, dando vértebra ao federalismo. No Congresso Constituinte de 1988, poucas vozes sinalizaram a intenção de debater as vantagens para a democracia com a alternativa de uma única casa parlamentar. Implicaria, por óbvio, no fim do Senado. A escassa ressonância obtida à época entre as elites políticas e a opinião pública, fornece um exemplo da transição brasileira e de seu “marco normativo”: a constituição-cidadã. Como em outros temas centrais à luta democrática (anistia recíproca, indefinições da função social da terra), nesse também prevaleceu a fusão de mudanças e manutenção.

O modelo de conciliação e reforma, em que a primeira sempre retarda e às vezes subordina a segunda, comemorou sua saga de emblema de nossa República ao reaparecer no eixo das negociações que finalizavam a ditadura de 1964, com o mesmo vigor de um século antes. O nicho para a representação exclusiva das oligarquias regionais prossegue no desenho institucional da nova etapa de formação do país, agora regido pela democracia política. Imensidão do território e diversidade da sua ocupação mais uma vez combinam-se como cláusula pétrea fincada na cultura política. Reiteram a função legitimadora do controle das mudanças e da renovação, emanadas das dinâmicas de uma sociedade já tremendamente modificada, que se diferenciou na estrutura produtiva, na cultura e na estratificação social, nas ocupações e aspirações de seus diferentes segmentos por justiça, cidadania e representação democrática.

Retido na conceituação nominal, o Senado dá configuração a “interesses de unidades territoriais” e não a demandas populares. Insensatez e metafísica, tão somente? Nem tanto, quando se reconhece que na versão política em que vigoram conflitos e interesses, sua existência traduz uma retaguarda das forças conservadoras. Assim tem sido o presidencialismo à brasileira, em que a chamada Câmara Alta antagoniza-se – não somente – com a maior sensibilidade popular do executivo. Também as expressões dos movimentos populares que conseguem assento na Câmara dos Deputados têm seus pleitos dificultados, re-significados e até mesmo impossibilitados de realizarem- se graças aos freios do Senado, dada a eficácia dos conluios do campo político, diria Bourdieu, que se abastecem nos ritos e ritmos bicamerais.

Difícil encontrar melhor imagem para a questão do que a declamada por Jefferson na aurora do sistema federativo nos EUA que, aliás, inspira o liberalismo brasileiro pró-Senado: tomando chá, no bom costume inglês do spot of Milk (temperar com uma gota de leite) ele professa: “[o Senado] vai ser para isto: para esfriar”. No limite lógico, num lapso em sua reconhecida e respeitada erudição, Afonso Arinos chegou a proclamar que a solução de criar o Senado denotara uma inspiração divina para os norte-americanos.

O debate político atual no país pouco coloca em tela a hegemonia dessa visão de democracia hierárquica e condicionada. Talvez porque o pensamento progressista em boa medida ainda concebe o nível institucional como secundário ou mera derivação da infra-estrutura. Ou então temos simplesmente a reprodução do discurso conservador e oportunista dos liberais.

No PT, por exemplo, o debate do unicameralismo não vinga, nem quando proposto pelo presidente Berzoini, como no último congresso do partido, em 2007. Ao contrário, o senador petista Tião Viana – eleito governador na última eleição – acorreu célere à tribuna (do Senado) para trocar efusivos afagos doutrinários com os pares Marco Maciel e Marcelo Crivella, irmanados ideologicamente na ética bicameral.

Curioso é verificar que o segundo tema acoplado ao emocionado discurso de Viana, de defesa do Senado, não foi outro que a absoluta reprovação da legalização do aborto, com base na firmeza de sua formação cristã.(1)

Dessa maneira, o pequeno expediente do Senado tem a utilidade de propiciar amenidades e fervores discursivos que revelam o essencial das razões antigas e contemporâneas para a sua alegada inevitabilidade na república. Garantir a unidade territorial do país, repetindo a abertura desta reflexão, fornece o slogan primaz e mais incisivo. No entanto, o federalismo em território continental não tem per si correlação exclusiva com o Senado. Também a Câmara dos Deputados traduz a representação dos estados, malgrado as distorções e outros limites à vontade popular que não desgrudam do nosso sistema eleitoral. Mas o temor aí é de que a representação proporcional, mantida a base de sua adoção em 1932, instigue eventuais vocações separatistas dos estados sub-representados.

Essa objeção ignora que a política é movida por distintas e simultâneas clivagens através das quais as lealdades e os antagonismos se revezam e misturam os atores políticos, imprimindo complexidade e fluidez às alianças e aos perfis das bancadas. E basta lembrar aqui que o cenário das bancadas partidárias vê-se acometido de lealdades corporativas e setorializadas, resultando num jogo irreverente de votações ruralistas, sindicais, feministas, evangélicas, católicas, étnicas etc., distantes de fixarem-se em filiações regionais (ou estaduais) permanentes.

Além disso, em que medida de legitimidade cabe anteceder o primado do federalismo ao da proporcionalidade?
Como desconhecer experiências de estabilidade nas interações interterritoriais em países de sistemas unicamerais, alguns deles também de grandes territórios (Suécia, Ucrânia, Nova Zelândia, para não citar países menores e contaminar o argumento)? Ou que em democracias bicamerais, como Canadá, o Senado é ocupado de forma quase proporcional, tendo as regiões mais populosas maior número de assentos que as menores? E, ainda, para apimentar, o adensamento da base dinâmica da economia, da cultura e da representação social do país em regiões metropolitanas está a demonstrar que a noção de federalismo não comporta perenidade ou cláusula pétrea.

Outra argumentação a favor do Senado, desde a origem, assenta-se no efetivo reforço à descentralização, que seria inerente à paridade entre estados desiguais. A ela também cabe repto. Sua utilização traz doses maiores de intencionalidade do que de substância democrática, conforme mostra uma breve visita ao debate atual. O antiestatismo hegemônico nos circuitos teórico-políticos dos anos 1990 parece superado, ao menos como receita automática para crises e ajustes. Hoje já ecoam mais os alertas feitos à época por algumas vertentes da inteligência acadêmica
(Ana Clara Torres Ribeiro e Marta Arretche, entre outros), de que descentralização e democracia não constituem sinônimos automáticos. A aproximação de seus significados depende da história e merece relativização analítica.

Na trajetória brasileira, (essa mesma, do grande território e dos diferentes estados) descentralização tem rimado com mandonismo dos chefes regionais. O rumo costumeiro da descentralização, sob diferentes modalidades (não apenas na República Velha), segue as vias do pacto federativo, indo do Estado central para os blocos regionais de poder, já descrito por Victor Nunes Leal, com a lei da reciprocidade:governabilidade sustentada no reforço e na sobrevida das oligarquias.

Um último aspecto, que nem conforma outro argumento, mas ornamenta os anteriores, mostra-se na acaciana declaração de ser o todo constituído pelas partes, cujas especificidades não caberiam jamais suprimir no desenho institucional da nação. Ora, será necessário dissertar sobre a heterogeneidade social dentro das partes ou de cada unidade federativa?

Dificilmente um estado, territorialmente considerado, constitui uma entidade unívoca, com interesses e vocações pré-existentes aos sistemas de estratificações, desigualdades e até mesmo de segregação que dinamizam suas respectivas sociedades. Isso somente ocorre, ao modo desta análise, nas hegemonias discursivas dos que, ao ditarem as fronteiras da unidade territorial, buscam convertê-las em fatores de unificação do interesse político do território. Representações heterogêneas coexistem e se cruzam no interior do território, não raro nutrem ensejos de solidariedade horizontal e integração política com segmentos similares de outras unidades federativas.

Certamente que a formação da unidade nacional tem aí razões mais decisivas do que as do propalado e inexistente equilíbrio territorial.

(1) Ver pronunciamento do senador Tião Viana no Senado, de 3/09/2007

* pcab21@hotmail.com

Doutor em Sociologia pela UNB.
Professor Adjunto da Universidade Federal de Goiás nas disciplinas de Teoria Sociológica, Sociologia Política e Política Brasileira. Desenvolve pesquisas e orienta alunos nas linhas de Cultura Política, Políticas Públicas, Participação Política e Democracia. Atualmente é diretor, em segundo mandato, da Associação Brasileira de Sociologia.