Immanuel Wallerstein faz uma forte crítica ao que ele chama de esquerda velha, em oposição ao que seria outra esquerda. A velha estaria preocupada em tomar o poder e depois transformar o mundo. Nesse pacote da velha esquerda ele coloca os partidos comunistas, os partidos social-democratas de todas as extrações e os movimentos de libertação nacional. Na leitura de Wallerstein o tomar o poder jamais teve como sucessão o transformar o mundo, mas sim o manter o poder. Já a nova esquerda, pós 1968, estaria simplesmente interessada em mudar o mundo. Nesse pacote, numa ação comum impensável antes, ele localiza anarquistas, sindicalistas e ambientalistas. Do ponto de vista institucional convém assinalar que a velha esquerda se articulava por meio dos partidos políticos e que essa esquerda se articula por meio das redes.
Marx por sua vez, comentando a Comuna de Paris, colocava como erro fatal, que nem mesmo a leitura entusiasmada de Lênin consegue ocultar, o fato de terem tomado o poder na cidade sem uma proposta concreta, o que teria levado à todo o conflito interno que acabaria facilitando o colapso da Comuna.
Para Wallerstein 1968 foi o início de uma revolução que ele não explicita de forma muito clara, mas certamente está ligada à sua leitura temporal de que o sistema capitalista mundial iria colapsar e desabaria em 50 anos. Alguma coisa por volta de 2020, talvez. Como base numa leitura de ciclos históricos e esgotamento da capacidade de reprodução lucrativa do capital ele construiu essa predição do colapso final. Já Giovanni Arrighi foi mais cauteloso e preferiu entender que a burguesia pode ser extremamente criativa ampliando as chances de permanência do modo, olhando, então, mais para a possibilidade de transformações sistêmicas inovadoras dentro do modo capitalista. Estaríamos hoje vivendo uma transição de uma hegemonia, a americana, para outra a multipolaridade, nisso ambos concordam, e ainda, talvez, para uma nova hegemonia, comenta Arrighi em “Adam Smith vai a Pequim”, a chinesa. Vale completar observando que Arrighi distingue três níveis diferentes na economia: O mais elevado, o capitalismo das altas finanças, “predatório”. O regime de mercado, que funciona numa esfera capitalista mais focada na produção e não nas finanças. E finalmente, num nível mais elementar a economia natural, aquela das transações do dia-à-dia.
O que ocorreu em 1968 foi um forte questionamento anti-sistêmico e podemos considerar que seu sucesso foi trazer para o centro do debate planetário questões que eram mais marginais como a desigualdade, o meio ambiente, gênero, sexualidade etc., hoje assumidas, inclusive, nos órgãos multilaterais. Mas nem por isso o sistema deixou de ser desigual. Tomando como referência a renda média dos países mais ricos com relação aos mais pobres as diferenças não se alteraram tanto nas últimas décadas. Sem desconhecer que em muitos casos houve evidente melhoria no padrão de qualidade de vida de muitas populações ou que há um forte impulso e estímulo na direção de regimes democráticos em regiões tradicionalmente dominadas por regimes autoritários.
A revolta que se instala hoje, mais de quatro décadas depois de 1968, não parece tão consistentemente anti-sistêmica e muito mais anti-financista. Ela vem à tona na onda da crise, primeiro americana e depois européia. O fato é que na época de ouro, nos anos de forte crescimento da capacidade de consumo, a leitura anti-sistêmica ficou restrita ao Fórum Social Mundial. O que parece estar havendo, muito mais que uma efetiva vontade de transformar o sistema é a vontade de não perder qualidade de vida. Não esquecendo que a boa qualidade de vida desses jovens do centro sustentou-se, em parte, na má qualidade de vida dos jovens da periferia e eles não vão às ruas para questionar essa questão, especificamente.
Essa parece ser muito mais uma luta por renda, emprego, qualidade de vida. Enfim, um conflito, que as instituições não conseguem resolver cooperativamente, indicando sim a necessidade de que se formulem novas instituições. Um conflito de caráter redistributivo da renda e não de poder. Embora se ataque o sistema financeiro, é muito otimismo revolucionário achar que ele visa a estrutura da propriedade privada. Há uma imensa diferença entre conflitos distributivos de renda e conflitos distributivos de poder com foco na mudança da estrutura de propriedade.
Há quem veja nas manifestações anti-capitalismo financeiro o colapso final do sistema capitalista e a ante-sala do socialismo. Entre nós, mais pragmático, o PT ao invés de ocupar a Bovespa prefere ocupar o Banco Central.
O problema de leituras como a que está abaixo é apenas um: De qual socialismo estamos falando? Pois é. Ocupemos Wall Street e daí?
Demetrio Carneiro
DIMAS E. SOARES FERREIRA - Editoria Opinião - 16/10/11 - 09h23
Na véspera do último dia do Trabalhador escrevi um artigo intitulado “Ande como um egípcio”, onde tentei mostrar como se deu o processo de associativismo político-sindical e de construção de uma esfera pública proletária, do ludismo no final do século XVIII na Inglaterra à eleição de um líder sindical para a Presidência da República no Brasil, do extremismo ideológico do socialismo utópico das guildas e falanstérios no século XVIII-XIX à insanidade ultra-liberal do Tea Party nos EUA neste início de milênio.
Outro dia li em algum lugar que os primeiros dez anos de um século tornam-se a referência de toda uma época. Assim foi com as revoluções burguesas no século XVIII, com a revolução industrial no início do século XIX, com as revoluções comunistas no início do século XX e agora com a crise do capitalismo e o fim eminente da hegemonia do Primeiro Mundo no início do século XXI.
Diante de uma série de acontecimentos inéditos na história mundial, talvez possamos estar descortinando um novo mundo onde o capitalismo, o liberalismo e principalmente os muitos fundamentalismos religiosos e políticos estejam com os seus dias contados e a sociedade global esteja se conscientizando da força da mobilização, do associativismo, do engajamento, da participação e da luta. Assim como Gandhi dizia “primeiro eles nos ignoram, depois nos ridicularizam, então nos combatem e, por fim, acabamos vencendo”, os árabes, cansados de viver sob a égide e a tutela de monarcas e ditadores teocráticos fundamentalistas incapazes de se sensibilizarem com índices absurdos de pobreza, exclusão e desigualdade, tomaram o rumo da história em suas próprias mãos. Ouviram o chamado de milhões de twitters, mensagens de textos e redes sociais e foram para as praças e ruas lutar por liberdade, democracia, igualdade de direitos e de oportunidades e, principalmente por dignidade. Egito, Tunísia, Síria, Iêmen, Bahrein, Líbia. Em todos estes países a história foi e está sendo escrita com o sangue de milhares de homens e mulheres dispostos a romper com as tradições e as crenças nas quais seus pais se submeteram calados e resignados.
Poucas semanas depois, a juventude europeia também explodiu em manifestações contra as mazelas provocadas pela crise econômica e financeira que se arrasta desde 2008, como desemprego, falta de perspectiva futura para a juventude, crescente desigualdade social e eliminação de direitos sociais e trabalhistas. O Welfare State que já vinha sendo desmontado a conta-gotas desde a ascensão dos neoliberais no início dos anos 1980 agora virou moeda de troca dos governos que, pressionados por banqueiros e financistas, viram-se coagidos a arrancar da Classe Trabalhadora europeia os direitos conquistados ao longo de décadas para que pudessem acumular recursos suficientes para não deixar a banca financista quebrar de vez. O projeto da União Europeia foi colocado em xeque diante da falta de sensibilidade dos mais ricos (Alemanha e França) em salvar os mais pobres e endividados (Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha). Logo o movimento da Puerta del Sol se espalhou por vários países europeus, chegando à “comportada” Inglaterra que viveu dias de fúria com intensas manifestações e rebeliões populares que explodiram a partir do estopim da violência policial britânica. Milhares de jovens europeus têm marchado pelas ruas e se aglomerado nas praças da Espanha, Portugal, Inglaterra, Grécia e Itália exigindo que os governos cobrem dos banqueiros e dos ricos a conta pela jogatina que se estabeleceu no sistema financeiro europeu. Mensagens digitais se espalham via celular ou pelas redes sociais na Internet e depois são gritadas pelas ruas e praças: 'De norte a sul, de leste a oeste, la lucha sigue, cueste lo que cueste!', 'No es crisis, es capitalismo', 'Menos polícia, más educación' e 'No nos mires, une-te.'
Os EUA, por sua vez, que já tinham experimentado uma crise econômico-financeira de proporções gigantescas em 1930-40, achavam-se imunes à Primavera promovida pelos jovens árabes e europeus. Mas, o país mais rico do mundo que se tornou cada vez mais desigual nos últimos 30 anos, a ponto de 1% mais rico dos norte-americanos possuírem 21,3% de toda a renda declarada, 34,6% da riqueza líquida, 49,7% dos investimentos de capital, 60,6% dos títulos do mercado financeiro e 62,4% das ações das empresas, além de possuir o mais alto índice de Gini de todos os países ricos e desenvolvidos, bem próximo dos 0,5 de Brasil, Chile e África do Sul, não escapou desta turba inquietante e revolucionária que emerge pelo mundo afora. O fato é que, desde 2008 a sociedade americana tem sido obrigada a conviver com uma crise financeira muito parecida com a que ocorreu em 1929, na medida em ela tem a mesma origem, isto é, mercado extremamente desregulamentado, gigantesca especulação financeira e ausência de autoridade política sobre o sistema econômico.
No início deste ano centenas de milhares de jovens, estudantes, trabalhadores, homens e mulheres de classe média e sindicalistas realizaram inúmeras manifestações de protesto contra a retirada de direitos trabalhistas e sindicais básicos por parte de governadores e congressistas estaduais republicanos ultra-liberais e ultra-conservadores ligados ao movimento do Tea Party. A imprensa norte-americana, controlada por grandes grupos empresariais ligados ao interesse do grande capital financeiro, simplesmente omitiu aos seus leitores e seguidores as informações a respeito deste que pode ser considerado o gérmen dos atuais protestos que invadiram o coração financeiro dos EUA – Wall Street. Em poucos dias os protestos ganharam o apoio de americanos de peso, como Michael Moore, Tim Robbins, Joseph Stiglitz, Susan Sarandon, Stephen Colbert, Cornel West e tantos outros.
A grande mídia de lá, assim como a de cá continua insistindo em não divulgar os protestos, talvez por medo de que a juventude acorde de vez e perceba que o capitalismo mundial está a beira do abismo e que basta a forcinha para que este turbilhão de protestos e revoluções se espalhem por todo o mundo e mostre finalmente que a verdadeira democracia participativa só será possível quando todos os meios de produção forem socializados e a Classe Trabalhadora se torne a verdadeira proprietária do fruto de seu trabalho. Assim como dizia G. D. H. Cole, lá atrás, ainda nos longínquos anos 1920, “a democracia abstrata das urnas” não envolve igualdade política real, nem tampouco o sufrágio universal é capaz de garantir esta igualdade, ao contrário, ele obscurece o fato de que o poder político, na verdade, está dividido com muita desigualdade. Ou seja, somente se eliminarem-se as grandes desigualdades de riqueza e posição social e as desigualdades de educação é que se poderá pensar numa verdadeira democracia e isso não é possível em um sistema capitalista. A luta não é contra a corrupção, como equivocadamente alguns poucos milhares de patricinhas e mauricinhos têm insistido aos berros pelas ruas das grandes cidades brasileiras, a luta deve ser contra o sistema. É como dizem as mensagens que replicam pela Internet e pelos celulares dos jovens americanos: “Ocupemos Wall Street.”
NOTA DA REDAÇÃO: Dimas E. Soares Ferreira é doutorando em Ciência Política pela UFMG e Mestre em Ciências Sociais pela PUCMinas (Gestão de Cidades). Diretor do Sinpro Minas; Coordenador de Comunicação do Instituto 1o de Maio; Professor da Epcar e Unipac; Revisor do eJournal of eDemocracy and Open Government. Vencedor do XI Prêmio Tesouro Nacional em 2006. Atua como articulista político do site barbacenaonline desde 2001.