Já no final da campanha de sucessão de FHC, quando ficou claro que Lula venceria o presidente fez uma tranquila declaração sobre a importância da rotatividade de poder. Ali estava o reconhecimento de que política institucional se faz dentro dos marcos da democracia e, embora não tão comentado, essa deveria ter sido a grande lição que todos apreendemos nos episódios que começaram pela destituição de Collor, passaram pela confirmação de Itamar Franco, as duas eleições de FHC e a eleição de Lula. Normalidade democrática e respeito ao rito. Lula será o primeiro presidente desta safra da Nova República a receber a faixa presidencial de um presidente eleito e entregá-la a outro presidente eleito.
Infelizmente, para todos nós, é diverso o comportamento do atual presidente. Lula e seus aliados não estão dispostos e nem preparados para a rotação de poder. Não pretendem abrir mão de seus cargos ou estilo de vida. E fazem e farão o que for necessário, mesmo que implique em fraude.
Este último episódio de Lula e Dilma escarnecendo da agressão sofrida por Serra por conta de uma montagem maliciosa das cenas dá o tamanho da questão republicana. A Presidência da República, que não deveria servir apenas para abrigar famílias mafiosas, tem recursos e pessoal técnico para saber distinguir uma montagem de cena.
No entanto e muito rapidamente Lula preferiu adotar a linha do escárnio ou invés da linha de defesa do direito de oposição como deveria caber a um chefe de Poder Executivo.
Em proveito do próprio projeto de poder Lula faz questão de misturar reações de um cidadão qualquer com as responsabilidades do cargo.
Infelizmente a Justiça Eleitoral é “neutra” à favor do poder. O juiz não pensou duas vezes ao mandar apreender o material da Igreja Católica, dando base para o PT usar a ação em sua propaganda eleitoral. Agora que está comprovado que o material é legal e a apreensão foi na realidade inconstitucional, será que haverá o direito de resposta no mesmo volume e intensidade em que as mentiras foram veiculadas? Ou a justiça vai esperar acabarem as eleições para julgar o caso “com mais objetividade”? Como vai ocorrendo com a Lei da Ficha Limpa?
As atuais eleições embora ocorram na Nova República são típicas de eventos e posturas da Primeira República, a chamada Velha República, cujo processo eleitoral era apenas formalidade para justificar uma eleição decidida nos gabinetes. Outra similaridade é que as questões locais eram resolvidas pelos famosos coronéis em circuitos de aliança que ligam o local ao nacional. Hoje a lógica de poder petista ainda trabalha com os antigos coronéis revitalizados como Sarney e Collor, mas usa os novos coronéis agora instalados no comando de uma miríade de entidades do movimento social, como atuação local, financiadas única e exclusivamente com recursos públicos e que servem de palco a todo tipo de proselitismo eleitoral do poder. O mesmo fenômeno vem se consolidando nas redes sociais. Muito longe de redes espontâneas são redes capitaneadas profissionalmente por pessoas pagas com recursos públicos, como o mais recente caso do site que centraliza os blogs governistas. Ainda terá que haver um debate sobre esses fenômenos de confirmação e sustentação de poder, ligados aos novos coronéis.
Na realidade estamos numa encruzilhada entre perder concretamente conquistas da democracia, do acumulo de anos de luta contra a ditadura ou perder, como lê o petismo, perder qualidade de vida. O que eles esquecem de avisar que não estão lutando pela qualidade de vida da população, mas a deles, embora digam que é tudo pelo povo. O núcleo malicioso da estratégia é saber confundir essas coisas, tratando o eleitorado como algo manipulável.
Certamente faltou um debate sobre o atual Estado de Bem Estar Social , sobre suas próprias garantias constitucionais, que independem da vontade de um presidente e sim da vontade da representação eleita, e sua relação com um projeto de desenvolvimento. Questões vitais como a educação, se postas como pontuais, perdem seu nexo e viram apenas propostas que podem ser contrapostas por outras propostas identicamente pontuais ou por um debate sobre indicadores. Já postas num contexto de proposta de desenvolvimento chegam sem problemas às bases da política de bem estar e expõe com clareza as contradições que marcam as atuais políticas públicas.
Outra questão que merecerá um balanço é sobre a auto-identidade de esquerda. O processo eleitoral trouxe à tona um conflito latente entre a esquerda clássica e a esquerda que busca se recolocar no mundo atual. É um debate muito antigo. Na realidade já havia antes do muro e tem suas raízes no século 19, se aprofundando durante os anos do stalinismo. Aqui entre nós foi muito pesado durante a luta contra a ditadura quando o arco de alianças se rompeu em definitivo, com os segmentos de esquerda clássica buscando a luta armada. A ascensão desses grupos ao poder via PT mostrou que a questão anda muito longe de ser encerrada.
A própria confusão no campo da oposição sobre o que é exatamente este “ser-de-esquerda” facilitou a operação ideológica de separação entre esquerda e direita dentro dos moldes da dicotomia clássica. Dicotomia na realidade inexistente, bastando para isto observar o próprio arco de aliança petista. O mundo dividido assim ficou mais fácil de ser compreendido e mais fácil de justificar todas as manobras eleitoreiras. Afinal, até os assaltos a banco foram “pelo povo”. Foi mais simples também para apropriar a paranóia esquerdista da conspiração e da auto-vitimização.
A leitura do Financial Times situando Serra como um candidato de direita mostra como a questão “pega”. É fácil perceber que a insistência em se definir como “católico contra o aborto” colocou Serra justamente no campo dos setores mais conservadores da Igreja Católica, historicamente identificados com as elites dominantes tradicionais. Por ironia aquilo que parecia um facilitador de aproximação com o fundamentalismo evangélico de Marina, nas mãos do petismo militante virou prova cabal da aproximação, sempre anunciada, entre Serra e as “elites” brasileiras.
Enfim, é apenas a opinião de um especialista em políticas públicas e não de um marqueteiro.
Demetrio Carneiro