Feio, não é bonito
O morro existe
Mas pede pra se acabar
Canta, mas canta triste
Porque tristeza
E só o que se tem pra contar
Chora, mas chora rindo
Porque é valente
E nunca se deixa quebrar
Ah, ama, o morro ama
Um amor aflito, um amor bonito
Que pede outra história
Salve as belezas desse meu Brasil
Com seu passado e tradição
E salve o morro cheio de glória
Com as escolas que falam no samba
Da sua história
O MORRO(feio não é bonito)
(Carlos Lyra, Guarnieri)
Nas últimas décadas quem desceu do morro não foi o filho da Dina da canção de Martinho - Diz lá prá Dina que eu volto. Que seu guri não fugiu. Só quis ver como é. Qual é.
Era a década de 60. Ninguém imaginava, mas alguns meses depois os cariocas estariam sentido o peso da opressão de uma ditadura que veio para durar mais de uma década. Quase duas.
Eram os anos da apoteóse lacerdista. Carlos Lacerda, governador do Estado da Guanabara, ex-capital da república, atual cidade do Rio de Janeiro, por conta de uma fusão resignadamente aceita, ele. Lacerda, era o cara.
Líder da direita assumida, coisa rara em nossos dias, popularíssimo entre a classe média urbana, branca, católica e anti-comunista, Lacerda se propunha a modernizar a cidade e trazê-la para o século XX, numa proposta tão arrojada quanto a do Prefeito Passos, no início do século.
Daí saíram obras perpetuadas e acabadas como o Aterro do Flamengo, água para o ano 2000 no Guandú, outras projetadas como o Túnel Rebouças, mas também o Esquadrão da Morte e Vila Kenedy.
O Esquadrão era a saída oficosa para romper a burocracia legal e prisional propondo uma via alternativa rápida entre essa vida e a próxima. Julgamentos caros, demorados, custos de prisão eram resolvidos a la chinesa: Uma bala. Se bem que no caso costumavam sempre serem muitas. Cara de Cavalo foi o personagem emblemático desse período, mas o EM começou mesmo suas atribuições como serviço social: Recolher e desovar (desovar os cadáveres) os mendigos, que já então assolavam e enfeiavam a paisagem carioca, no Rio da Guarda, afluente do Gandú, estrela da cora de obras públicas.
Outra marginalidade irritante eram as favelas. Não tanto as da zona norte, mas as do pedaço mais precioso de nosso cartão postal, a zona sul. O Rio vivia a cultura do túneis. A cidade se dividia em antes de depois dos túneis. Para nós que éramos da zona norte o pós-túnel era a sociedade dourada da beira de praia. No entre-meio tinha Flamengo, Botafogo e Urca – ainda usáveis, mas era Copacabana o objeto de desejo.
Num ato de arrojo Lacerda busca recursos na Aliança Para o Progresso da Kenedy e inicia um ambicioso programa de remoção de algumas favelas emblemáticas:
Morro do Pasmado, acima do Túnel Novo, logo ali na marca da transição oficial entre o Rio do Sul e o Rio do Norte.
A favela da Lagoa, bem de frente para o metro quadrado, na época, mais caro da cidade.
Outras foram no embalo: No Maracanã, abrindo mais tarde espaço para a Universidade do Rio de Janeiro. Na Praia do Pinto e em Ramos, bem na beira de Av. Brasil, via já na época de intensa circulação e ponto de chegada a Rio/São Paulo. As duas eram as única favela que existiam na beira da Av. Brasil na época.
Vila Kenedy foi uma operação de orientação estética. Resultado da discriminação social e de uma sociedade fortemente exclusiva. Essa foi a leitura da esquerda carioca e foi ao redor desses conceitos que o combate de idéias foi travado. Apenas de idéias, pois por mais que fosse desejado aquela não era uma questão que mobilizasse a população, nem mesma as populações das outras favelas em vias de seguirem o mesmo modelo.
Lacerda quis e fez. Mais traumático que a frustração esquerdista foi o lá viver para aquelas populações.
Favelas são construídas como estratégia de sobrevivência com a finalidade de aproximar geograficamente oferta e demanda de mão de obra não qualificada.
A mais de duas horas de viagem do mercado de trabalho, as casas, muito superiores aos barracos, não foram argumento suficiente para suprir o desemprego.
Certo que o projeto, feito pelos americanos da APP, sabiamente previa, já naquela época, a requalificação da mão de obra, mesmo que burocrático e ineficiente. Contudo estávamos do lado de cá do túnel e do lado de baixo da linha do equador. Não só não tínhamos pecados. Também não tínhamos vergonha e os projetos jamais decolaram.
Para a esquerda carioca Vila Kenedy foi o emblema da aliança entre a direita nacional, Lacerda, e o imperialismo norteamericano, a Aliança Para o Progresso.
Naquele momento a marginalidade na habitação não era apenas arte que se expressava nas músicas – Podem me prender, podem me bater que eu não mudo de opinião. Daqui do morro eu não saio não...- ou no cinema, o Orfeu Negro.
A marginalidade na habitação era expressão da marginalidade social e apresentava sua face mais política no debate sobre bandidos e revolucionários de Hobsbawn, ou o Bandido Giuliano de Rosi.
No imaginário carioca o malandro sempre teve lugar de honra. Era um ilegal, vivendo de golpes e esperteza. O avô do “se dar bem” de Romário. Mas era, principalmente, uma figura simpática e contraposição ao autoritarismo policial.
A questão da favela carioca ou das ocupações marginais e a possibilidade de soluções alternativas acabou cristalizada como um ato de resistência política, num momento em que ser marginal era sinônimo de ser revolucionário. O MST respira, ainda, este mito.
A dimensão de resistência deixou escapar questões fundamentais como a possibilidade de reprodução infinita do modelo por toda a cidade. A lógica de anti-planificação trouxe mais próximo o caos urbano.
O lócus do narcotráfico não é a marginalidade idílica da cultura de esquerda. É o caos urbano. É lá que ele se instala territorialmente e cria seu próprio Estado.
Coube a uma americana, logo uma americana, Janice Perlman em “Favela: O mito da marginalidade”, recolocar e rediscutir o papel das favelas.
Na leitura que faço da obra dela, ao contrário de locais da revolução social as favelas são os locais de reprodução do modo capitalista ao acomodar as contradições de uma sociedade basicamente injusta, criando oportunidades de emprego para a mão de obra desqualificada, que só são viáveis pela proximidade geográfica, fator fundamental numa mega-cidade como o Rio, onde a locomoção de um ponto ao outro pode, entre ida e volta, significar até seis horas por dia.
Revolta a cultura tradicional de esquerda, ainda, mas as favelas são válvulas de escape do sistema injusto e não a panela de pressão. É o problema do copo meio vazio ou meio cheio.
Na realidade o debate da Vila Cruzeiro não for seguido sobre um debate à propósito do caos urbano e da marginalidade habitacional teremos uma vitória de Pirro. Ao hastearem as bandeiras na Vila Cruzeiro Reinaldo Azevedo lembrou, sabiamente, que, em curto espaço de tempo, era na verdade a terceira vez que aquilo era feito.
Cabe à cidade debater, mas o fato é que as favelas são o que são e são principalmente lugar de confirmação da desigualdade fundamental de nossa sociedade. Questões que só se resolverá com a geração de emprego e condições dignas de habitação e qualidade de vida.
A acomodação e o paliativo não substituem a renda do emprego, a necessidade de saneamento básico ou a inexistência de um sistema educacional eficiente. A maior ausência do Estado está na expansão do caos urbano.
Urbanizar favelas terá que ser muito mais que asfaltar ruas ou fornecer água e energia elétrica.
No fim do dia o problema das habitações marginais é carioca, mas também é brasileiro e só se resolve, da mesma forma que as outros questões sociais, saindo do mero asistencialismo na direção de políticas de promoção social.
O “levar o Estado” às favelas é sonoro, dá votos, mas sozinho não resolve.
Pessoas subempregadas ou desempregadas continuarão com os mesmos problemas de falta de futuro numa sociedade cuja dinâmica desloca do mercado até mesmo as classes e grupos mais bem colocados.
Não existe romantismo nenhum a não ser no imaginário e nas resistentes matérias sobre os cariocas que “adoram” morar na favela.
As pessoas não estão lá por vontade própria, mas por falta de opções na questão da habitação, no direto à habitação, que é tratado como recurso eleitoral e não como questão que afete profundamente a qualidade de vida das pessoas.
É preciso discutir com clareza as relações econômicas entre a favela e a cidade.
É preciso discutir com clareza as relações econômicas entre a favela e a cidade.
A cidade não pode mais ser a herança feudal dos Castelos à prova de sítio e das Marcas nas suas fronteiras.
É precisamos discuti-la como local da equidade.
A cidade inclusiva como responsabilidade de todas e todos.
Essa nova cidade precisa ser inventada como obra coletiva.
Demetrio Carneiro