Outro aspecto também interessante está nesse trecho:
“Nossos temas devem ser soberania, unidade territorial, inclusão social e política, desenvolvimento regional e descentralização do governo. Não precisamos de muitos ministérios. Teremos o básico: Economia e Petróleo, Relações Exteriores, Defesa, Interior. Os demais, todos os que tiverem relação com serviços públicos, devem estar associados aos municípios. As pessoas sentirão que estarão controlando suas vidas. Quando falamos na Constituição, precisamos ter claro que as pessoas precisam se reconhecer nela. Nossa identidade de muçulmanos e moderados deve estar nela, como sempre esteve em nossa sociedade.”
Este Estado recém nascido segue por caminhos federativos, descentralização da estrutura de poder, que não tivemos qualquer condição de trilhar, embora ainda estejamos na obrigação de fazê-lo, se pretendermos ter um dia instituições mais democráticas que as atuais...
Demetrio Carneiro
TRECHOS DA POSITIVA E SURPREENDENTE ENTREVISTA DO NOVO CHEFE DE GOVERNO DA LÍBIA AO ESTADO DE SP (15)!
Mahmoud Jibril. Doutor em ciências políticas pela Universidade de Pittsburgh, nos EUA, ele foi presidente do Conselho Nacional de Transição (CNT) durante o levante contra Kadafi. Nessa função, encontrou-se com os principais líderes mundiais e conseguiu apoio político e militar para a revolta armada que tomou Trípoli há quase 11 meses. Jibril é hoje líder da Aliança de Forças Nacionais, vitoriosa nas eleições, e tornou-se o homem mais poderoso da nascente democracia líbia.
1. A Líbia era um país que saía de uma revolução, com uma grande lacuna em sua cultura democrática causada por um regime autoritário de 42 anos. Os líbios não conheciam o comportamento democrático. O que vimos, porém, foi o povo em massa nas ruas, fazendo fila nos locais de votação e celebrando nas ruas um processo democrático totalmente transparente. Como? Ninguém pode explicar o que aconteceu com o país. Eu não esperava que a eleição fosse ser tão transparente. A organização foi quase perfeita. Foi como se estivéssemos realizando eleições em Paris, Roma ou Washington.
2. Ao longo da história, eleições só ocorriam quando existia um Estado organizado, com Forças Armadas preparadas, com polícia presente, com uma Justiça ativa e forte, que regulasse os eventuais excessos. Esse é o guarda-chuva que sempre garantiu eleições corretas. Na Líbia, fizemos eleições em condições totalmente adversas, sem um Estado organizado e com uma população armada. Deveria ser muito perigoso, muito sensível, mas não foi. A única explicação que tenho é que a sociedade decidiu participar sem armas, com um comportamento cidadão.
3. A maior parte da população da Líbia pertence a uma mesma corrente moderada do Islã, com exceção de nossos irmãos berberes, que pertencem a outra corrente, também moderada. Seguimos essa orientação desde a chegada do islamismo ao país. Até aqui, se discutia que tipo de Islã queríamos. Creio que os líbios se deram conta de que são uma população muçulmana homogênea desde sempre. Talvez sejamos a única sociedade no norte da África 100% muçulmana. Por que deveríamos colocar esse tema no centro de nossas discussões, se todos estamos de acordo sobre que tipo de religião queremos? Alguns grupos islâmicos quiseram impor essa agenda de discussões, tentando criar uma fratura entre quem seria ou não realmente muçulmano. Mas a população rejeitou esse discurso.
4. O regime de Kadafi criticou muito fortemente o islamismo político durante os 42 anos. A população soube reconhecer, na campanha eleitoral, que havia um islamismo político. Mas não acho que a Líbia possa ser comparada com Tunísia ou Egito, onde a Irmandade Muçulmana atua desde 1938. Na Líbia, eles não tiveram a oportunidade de amadurecer sua organização nem de lhe dar experiência política. No Egito, a Irmandade Muçulmana tinha um papel econômico e oferecia atendimento de saúde e educação quase de graça. Eram serviços à população que, de certa forma, criavam um vínculo de dependência social e econômica e lhes dava um papel quase inevitável na vida de cada cidadão. Isso não ocorreu na Líbia, mesmo que tivéssemos serviços públicos calamitosos.
5. Esses rótulos não são saudáveis. Não temos nada a ver com ideologia. Essa coalizão não fala de ideologias. Quem é liberal vai às ruas e diz que é liberal. Há alguns partidos liberais, que na campanha se apresentaram como liberais. Mas esse não é o nosso caso. Não somos liberais. Por que as pessoas tentam nos rotular assim? Respeitamos todas as ideologias, mas essa não é a nossa. No liberalismo, fala-se de liberdade, igualdade. Mas, muitos séculos antes da Revolução Francesa, o Islã já falava desses princípios universais. Todos nós buscamos a liberdade.
6. O Islã afirma que não há autoridade além da de Deus. Todas as autoridades que criamos como intermediárias não têm o mesmo valor para nós. O que falamos é da liberdade mais absoluta. As outras ideologias pregam o respeito aos intermediários: a lei, a Constituição. No Islã, aprendemos a temer apenas a Deus. Essa é nossa principal liberdade. O rótulo liberal não é útil. Precisamos de todas as forças políticas para construir o país. Temos de construir um Estado, uma Justiça, uma polícia eficiente, Forças Armadas dignas. Quando tivermos um Estado, discutiremos tendências políticas. Agora, precisamos trabalhar juntos. Por isso, falamos em coalizão, não em competição.
7. Nossos temas devem ser soberania, unidade territorial, inclusão social e política, desenvolvimento regional e descentralização do governo. Não precisamos de muitos ministérios. Teremos o básico: Economia e Petróleo, Relações Exteriores, Defesa, Interior. Os demais, todos os que tiverem relação com serviços públicos, devem estar associados aos municípios. As pessoas sentirão que estarão controlando suas vidas. Quando falamos na Constituição, precisamos ter claro que as pessoas precisam se reconhecer nela. Nossa identidade de muçulmanos e moderados deve estar nela, como sempre esteve em nossa sociedade.
8. A sharia (lei islâmica) tornou-se parte de nossa identidade. Tudo o que contrariar nossa visão comum do Islã não deve ser incluído na Constituição. Por outro lado, ninguém deve impor sua própria visão da sharia à Constituição. O que os líbios escolherem será o correto, porque eles são o sujeito da Constituição. Bares, álcool, prostituição e coisas do tipo devem ser rejeitadas, porque não são aceitas pelas pessoas nas ruas. É nesse sentido que digo: uma parte da sharia está internalizada em nossa consciência. É uma questão de comportamento. Há pessoas que não rezam na Líbia. No entanto, quando chega o Ramadã, eles aderem, porque a sociedade inteira adere. É constrangedor não aderir. Por isso, nossa concepção do Islã e da sharia já faz parte de nossa sociedade. Rejeitar na Constituição os princípios da sharia, que são aceitos por todos, seria artificial e contraproducente.