Segundo R. Stavehagen, em Estratificação social e estrutura de classes”¹:
“Nos sistemas de estratificação que permitem a mobilidade social entre os estratos, esta tem a dupla função de reduzir as oposições mais agudas entre as classes e de reforçar a própria estratificação. A estratificação desempenha, pois, um papel eminentemente conservador na sociedade, ao passo que as oposições e os conflitos de classe constituem um fenômeno de ordem dinâmica, por excelência.”
Evidentemente Stavehagem aqui está se referindo ao conflito distributivo mais amplo, referente à propriedade, que seria o objeto da luta de classes, da luta entre as classes sociais. Evidentemente aqui classe social são as classes fundamentais do capitalismo: Proprietários e não proprietários dos meios de produção. Não há mobilidade a se considerar e trata-se simplesmente de mudar ou não o regime de propriedade. Num sentido diferenciado está a noção de estratificação, que também pode envolver um conflito distributivo, mas bem mais restrito e mais ligado à renda e capacidade de consumo. Nesse aspecto o Estado tem papel relevante mediante sua capacidade redistributiva. Aqui há mobilidade e indivíduos, por razões diversas, podem ir de uma faixa de consumo para outra, num sentido, para cima, ou noutro sentido, para baixo. Quando Stavehagem fala da caráter conservador desses estamentos em ascensão ele está se referindo ao fato de que enquanto o conflito distributivo da propriedade tem um caráter possivelmente transformador da sociedade, o conflito distributivo da renda pode ter um caráter modificador, isto é, os indivíduos podem querer melhor qualidade de vida, mas não são transformadores. O conservadorismo está ai. De qualquer forma, mesmo aceitando que não vivemos por hipótese uma faixa de escolhas entre propriedade e renda, há uma ampla literatura sobre como a mobilidade de segmentos, principalmente os ligados ao trabalho informal, acaba tendo um papel acomodatório do ponto de vista político, refreando demandas.
A Constituição de 1988 resultou numa pró-atividade do Estado na questão da redistribuição da renda. A partir dela não compete ao Estado apenas a intervenção genérica na esfera econômica, buscando Estabilidade e Crescimento, mas também a intervenção na esfera social. De lá para cá multiplicaram-se as políticas públicas de garantias mínimas e inclusão social.
O período mais recente, a partir de 2002 até 2008, trouxe um contínuo processo de crescimento interrompido em 2009, mas retomado em 2010.
Como parte da estratégia desenvolvimentista de consolidação de um mercado interno estendeu-se ao limite prudencial a capacidade de fornecimento de crédito ao consumidor.
Vistas em conjunto essas três situações geraram uma mobilidade social ascencional exepcional. Provavelmente uma das maiores, senão a maior, já ocorrida nas últimas décadas tendo em vista o restante dos países.
A própria força de trabalho formal veio se modificando em números também impressionantes:
Tendo em vista formação, tempo de educação, da População Economicamente Ativa Ocupada³, entre 1992 e 2007, o número de indivíduos com mais de 11 anos de estudo cresceu 57%. Entre 8 e 10 anos 33%. Já, na outra ponta, indivíduos de 1 a 3 anos caiu 28% e indivíduos com menos de um ano ou nenhum caiu 35%. Talvez possa haver aqui uma aumento de diferença, maior desigualdade, entre os indivíduos empregados formalmente e os informais. É um caso a se estudar.
Importante registrar que se as modificações na qualidade da população economicamente ativa ocupada estão ligadas à dinâmica de crescimento da economia, o ingresso no mercado de consumo dos segmentos informais se deu pelas políticas públicas somadas à extensão do crédito ao consumidor. Com efeito a expansão de nosso mercado interno vem se dando não apenas pelo aumento de renda via crescimento econômico, mas e provavelmente de forma marcante pelo ingresso de setores antes marginalizados ou quase à margem do mercado de consumo.
Chamar de “classe” média emergente pode ter algum exagero, pois certamente não esses segmentos extremamente heterogêneos não chegam a constituir uma “classe” social, mas certamente são um importante segmento da população em um processo de intensa mobilidade social.
Essa mobilidade social não envolve apenas questões econômicas e sociais. Ela também interfere na política.
Essa mobilidade tem implicações políticas e, preliminarmente, pois ainda há muito para estudar, o perfil desses segmentos que ascenderam recentemente parece indicar uma formação mais conservadora, mesmo focada nas transformações sociais e mais focada na qualidade de vida.
Não se trata de algo que se possa ignorar se tivermos em vista alguns dados:
Entre 1988 e 2011 a base de eleitores registrada no TSE² cresceu 78% (75, 810 milhões contra 143,821 milhões). A população brasileira nesse mesmo período cresceu 37% (141,997 milhões contra 194,932 milhões). O crescimento da base de votos foi mais do dobro do crescimento da população.
Na política o primeiro registro que podemos fazer, e é relavante, é que houve uma forte ampliação da população votante sobre a população total, o que necessariamente implica em maior pressão por políticas públicas, principalmente se tivermos em vista a origem possível desses eleitores.
Em ordem de crescimento, por regiões, comparando ainda 1988 com 2011²:
O número de votantes na região Norte cresceu 144%. Na região Centro-Oeste 108%. Na região Nordeste 80%. Na região Sudeste 71% e na região Sul 62%.
A se olhar esses dados, mesmo que essa mobilidade para cima resulte num perfil mais conservador, aparentemente esses segmentos ainda estão fortemente dependentes da ação do Estado. Daí não ser difícil imaginar que venham a se constituir em eleitores conservadores sim, mas propensos a dar à participação do Estado um peso relevante. Para o bem ou para o mal. Ou seja um governo que não seja capaz de manter os mesmos padrões de consumo pode pagar a conta sendo substituído por um eleitorado que provavelmente votará com o bolso. O que talvez explica as novas teorias desenvolvimentistas sobre o piso mínimo e crescimento, mesmo com risco de retomada do processo inflacionário.
Seja como for, entre 1988 e 2011 mudou o status políticos desses indivíduos, com sua incorporação à democracia representativa e isto certamente mudou e continuará mudando sua relação com o Poder.
O que há pela frente é um processo de amadurecimento político onde fique mais evidente para esses indivíduos a relação entre o tributo apropriado e o seu resultado em políticas realmente públicas. Ai pode estar um ponto de inflexão a ser considerado pela política.
Demetrio Carneiro
1) em “Estrutura de Classes e Estratificação Social”, Zahar Editores, RJ, 1976
2) Fonte:: Site do TSE
3) Fonte:IBGE, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 1992/2007